Nos Bastidores do Reino
A Vida Secreta na Igreja Universal do Reino de Deus
riva de reunir minha familia, que morava na Bahia enquanto eu esta-
va em Sao Paulo. Por diversas vezes tentei reconquistar Graca, que
relotava em me dar uma chance, mesmo quando foi em Salvador para
Ihe dizer pessoalmente que estava voltando para a Igreja.
Ela nao acreditava que eu pudesse me reintegrar a Igreja com o
mesmo espirito de antes. Achava que eu era muito critico e que ja-
mais me incorporaria ao sistema da Igreja. Mas eu pensava que talvez
fora do Brasil, longe da onipresenca do bispo, a coisa seria diferente.
A Igreja estava entrando na Europa a partir de Portugal c eu teria
a chance de comecar tudo de novo e ainda recuperar minha familia.
Liguei para o pastor Paulo pedindo que me aceitasse em Lisboa e logo
acertamos a minha ida para aquele pais.
Enquanto trabalhava na Varig, me reconcilici com o pastor Paulo
e foi isso que facilitou a minha rapida reintegrac,-ao ao ministerio. Se
nao fosse por isso teria sido impossivel, apos eu "ter olhado para tras",
voltar a ser pastor na Igreja Universal.
Ao me despedir das criancas em Salvador, prometi que em dois
meses no maximo voltaria para busca-las e juntos iriamos comecar
uma vida nova em outro lugar. Por alguma razao eu nao acreditava
que cumprirla 0 que estava prometendo.
Anoitecia quando sai cdo predio em que morava em Sao Paulo.
Carregava uma unica bolsa de roupas. Era uma noite chuvosa e fria.
Enquanto boscava um taxi, procurava repetir para mim mesmo que
tudo iria acabar bem. Cheguei ao aeroporto de Guarulhos bem em
cima da hora. Apressadamente fiz o cheek-in e pOtlCO depois estava a
bordo do aviao que ia para Lisboa com escala no Rio de Janeiro.
Meu corpo completamente fraco se deixou cair na poltrona. Eu
havia ficado doente quando fora me despedir de meu pai na Boa Vista.
Por oito dias tive forte febre e tossi dia c noite. Meu pai me disse que
aquilo era sintoma do dengue, doenca tao normal ali como gripe em
qualquer outro lagar do mundo. Quando me despedi cle meu pai, ele
me beijou na testa e me disse que nao ficasse longe dos meus filhos
por muito tempo.
Com a cabeca recostada na janela do aviao, figuei
por alguns mi-
nutos oSservando 0 imenso tapete de lazes, enquanto sobrevoavamos
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Sao Paulo. Curiosamente, eu estava cansado e fatigado como se tivesse
feito algum servico bracal por semanas a fio sem nenhum momento
de descanso. Eu precisava fazer planos. Pensar na vida que comecaria
em Portugal. Pensar em como fazer para convencer Graca a voltar
para mim. Mas eu nao encontrava forcas. Meus olhos com suas palpe-
bras pesadas se fechavam contra a minha vontade. Nao sabia explicar
porque estava tao fraco e nao queria pensar naquilo agora. Pensaria
mais tarde. Amanha, talvez. Sem oferecer nenhuma resistencia, ador-
meci. Ou desmaiei.
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CAPITULO CINCO
BRASIL, NUNCA MAIS
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Enquanto, no Brasil, Fernando Collor deixava os pobres indigna-
dos, os ricos perplexos e a poupanca "imexivel", desembarquei em
Lisboa. Portugal era tudo aquilo que imaginara quando li O primo
Basilio e outros livros ambientados na terra de Camoes. A sua beleza
logo me cativou. Apcsar de que em qualquer padaria no Brasil e
possivel ouvir louvores a "terrinha", 0 encanto do lugar superou ate
os mais exagerados elogios que tinha ouvido. Era como se o tempo
tivesse parado em Portugal. Sua arquitetura, a torre de Belem, de
onde partiam as caravelas dos grandes ciescobridores, as pracas, as
igrojas. Tudo estava ali. Bem conservado e nos fazendo regredir meio
., A .
ml~enlo.
Mas, curiosamente, 0 encanto do lugar contrastava com 0 seu po-
vo. A melhor definicao que encontrei para Portugal foi aquela que
escrevi a um amigo no Brasil: "Um pais colorido habitado por um
povo preto e branco".
A sede da Igreja ficava localizada na Estrada da Luz, em Benfica.
Funcionando no terreo de um predio residencial, o local ja era peque-
no para acomodar a enorme multidao que comparecia aos cultos.
Fizemos uma estrondosa campanha publicitaria nas radios e em ou-
tros meios de comunicacao. Logo ganhamos fama e percorremos todo
o pais arrebanhando milhares de fieis em cidades como Coimbra, Porto,
Faro, Ilha da Madeira e Acores.
Ainda traumatizado com a ditaJura de Salazar, o povo portugues
se rendeu as nossas investidas, repetindo assim o fenmeno brasileiro:
uma terra famosa pela sua fe catolica - no caso de Portugal, palco,
inCtUSive, das aparicoes da Virgem Maria em pessoa - abracava a Igre-
ja Universal do Reino de Deus com as suas promessas de milagre a
curto prazo.
. ,
99
Em pouco tempo, a Igreja estava tao grande quanto no Brasil. Com
a vantagem de as ofertas serem feitas em moeda forte e, por inter-
medio de Portugal, termos livre transito pelos paises membros da
Uniao Europeia.
Com a excecao do pastor Paulo e do pastor Silverio, um portugues,
eramos todos ilegais em Portugal. Por isso, a cada tres meses tinha-
mos de cruzar a fronteira com a Espanha, uma forma de borlar o servi-
co de imigracao e ficar dentro dos noventa dias permitidos. Nos apro-
veitavamos essas saidas para sondar a possibilidade de fincar nossos
templos em outros lugares daquela fechada - e rica - comunidade.
Nesse esquema, visitamos a Franca, a Italia (o sonho do Bispo era
construir um imenso templo da Universal em Roma, para competir
em pe de igualHade com o papa), a Espanha, a Inglaterra, a Suica e a
Holanda. Houve visitas tambem a Africa. Nao a Ruanda ou Burondi,
mas a prospera Africa do Sul, que ja sinalizava para Nelson Mandela.
O nosso estilo de vida em Portugal era semelhante aquele dos
tempos aureos na Bahia. Eu recebia quinzenalmente o equivalente a
450 dolares e a Igreja ainda pagava o aluguel do apartamento em que
eu morava na Reboleira, suburbio de Lisboa.
O pastor Paulo, por sua vez, ocupava um luxuoso apartamento
num condominio fechado reservado a classe alta lisboense, localizado
proximo a embaixada brasileira.
Fomos orientados a nao demonstrar sinais de "posse excessiva",
pois isso poderia ofender os novos convertidos, que eram quase todos
portugueses pobres e centenas de angolanos e mocambicanos que
haviam fugido da guerra civil em seus paises.
Assim sendo, tomamos alguns cuidados: ternos comprados em
Milao, por exemplo, so deveriam ser usados aos domingos de manha
ou durante a celebracacJ de algum casamento importante. lamos para
a igreja de taxi, deixando na garagem os of ensivos conversiveis. Como
o exemplo vem de cima, pastor Paulo se dirigia a igreja com o Hyun-
dai da mulher, em vez de no seu genuino Mercedez-Benz.
O fato de que eu estava novamente na Igreja nao fez com que Gra-
ca mudasse sua opiniao sobre o nosso casamento. Ela relutava mesmø
quando a Igreja ja tinha dado sinal verde para que eu levasse a familia
100
~ -.
para Lisboa. Disse-me que havia perdido a confianca em mim e alem
disso achava que nao me amava mais. Mesmo assim eu ainda nao me
dava por vencido. Nao acreditava que ela se lancaria na louca aventura
de criar dois filhos sem a presenca do pai. Achava que cedo ou tarde
ela voltaria para mim. Com todos os meus erros e defeitos. Felizmente
eu estava errado.
A musica era uma industria que comecava a crescer dentro da Igreja.
No comeco dos anos 80, foi fundada a Gravadora Universal, que tinha
astros como Roberto Augusto, Rosalba, Nelson Monteiro da Mota-
interprete do famoso Segura na mao de De~s, alem do versatil bispo
Macedo. Mas a gravadora so deslanchou quando comecou a gravar
novos talentos, como Martinho Lutero,Jonas Madureira, Marcio San-
tos, pastor Renato Suhett e Thalita, entre outros.
Um dos segredos para a vendagem de discos era dar roupagem
evangelica a sucessos populares. Nesse esquema, foram regravados su-
cessos de Elvis Presley, Paul Simon, Morris AlLert, Frank Sinatra e
Kenny G. Caindo logo no paladar do povo, a industria mosical passou
a ser um dos bracos mais lucrativos da Universal.
Assim como acontecia no Brasil, a mosica comecou tambem a ser
explorada em Portugal. As centenas de ~PS que chegavam semanal-
mente do Rio eram todos vendidos em questao de horas.
Vendo o interesse do povo portugues pela musica, foi importado
do Brasil o cantor-pastor Gilmar para incrementar a parte musical
dos cultos com o seu talento no orgao e sua voz maviosa.
Durante muito tempo, o pastor Paulo vinha comentando seu dese-
jo de adquirir para a igreja em Lisboa o mesmo orgao existente na
sede brasileira, em Sao Paulo. Esse orgao era 0 ultimo lancamento da
Yamaha. Fabricado no Japao, era praticamente impossivel adquiri-lo
na Europa O meio mais facil seria compra-lo no mercado americano,
onde o instrumentO sairia em torno de 5 mil dolares.
A Igreja nos Estados Unidos concordou em fazer a negociacao e
ficou acertado que um dos pastores que estava em Portugal iria a Nova
York levar 0 dinheiro e trazer 0 orgao. Fui 0 escolhido. O pastor Paulo
me deu 6 mil dolares em `-ash e me conduziu ao aeroporto, de onde
embarquei com destino a Nova York. Estava previsto voltar a Lisboa
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sua mansao nos arredores milionarios de Nova York. Um reduto de
baroes de Wall Street.
Aos poucos o bispo foi descobrindo que a sua chamada "missao
norte-americana" seria mais espinhosa do que ele havia imaginado.
Ele e seus pastores - com um "ingles macarrnico" feito as pressas
num cursinho do Fisk- nao conseguiram convencer os americanos.
Um povo que, depois do escandalo de Jimmy Swagartt, duvida ate
mesmo da sinceridade de Billy Graham.
Para piorar a sua situacao, o Ir~Jide edition, programa jornalis-
tico da NEC transmitido ao vivo no horario nobre e assistido por
milhoes de americanos de costa a costa do pais, mostrou durante
meia hora um raio X do Bispo, a quem chamaram de "pastor de
muitos milhoes de dolares". Classificaram o trabalho de libertacao
espiritual da Igreja de "exorcismo de pessimos efeitos especiais" e
mostraram os bens do bispo no Brasil e nos Estados Unidos. O
programa dedicou atencao muito especial as suas mansoes e a uma
colecao de BMW, numa epoca em que possuir esta marca de carro
era sinnimo de opulencia.
Ja me preparava pata voltar a Portugal quando o pastor Manuel
me avisou que eu seria mantido em Nova York. Ele disse que ali havia
mais necessidade de pastores do que em Lisboa. Na verdade adorei
a decisao e nao me pareceu nada ma a ideia de morar em Nova York.
No Brasil eu devorava qualquer revista que tivesse aquela cidade como
tema de reportagem. Lia, inclusive, o "Diario da Corte", do Paulo
Francis, mesmo que os artigos me fizessem mal depois de cada leitu-
ra, por causa da dose indigesta de fascismo (mas, como um bom Son-
risal, Caio Tulio Costa, entao ombudsman da Folha ~le 5. Po~z~lo, ali-
viou minha alma, com a polemica em que Francis foi duramente des-
mascarado).
Fiquei nos Estados Unidos e ingressei no pequeno time de pasto-
res da Igreja no pais: Manuel, Marcio, Natanael, Haroldo e o hondu-
renho Carlos Moncada. Em materia de gente e dinheiro, a Igreja em
Nova York estava indo muito mal. Macedo logo descobriu que a com-
pra daquele teatro no Brooklyn tinha sido um pessimo investimentø
Parecia que desta vez o seu faro de Tio Patinhas o enganara.
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O dinheiro arrecadado nem mesmo compensava abrir a igreja pela
manha. Os gastos, que incluiam salarios de pastores, secretarias e mo-
toristas, contas de luz, telefone e fax, excediam as pouguissimas ofer-
tas dadas pela meia duzia de (nao tao) fieis que freqentava os cultos.
Para arreLanhar mais pessoas houve todo tipo de apelacao. Alem
de distribuicao de panfletos e cultos em pracinhas ao ar livre - prati-
cas que a Universal condenava no Brasil por achar serem t~picas de
"igrejinhas de crentes"-, foram colocados televisores na porta do tem-
plo que exibiam durante o dia inteiro imagens de grandes cultos rea-
lizados no Brasil em locacoes como Quinta da Boa Vista, Maracana,
Pacaembu e uma serie de outros estadios espalhados pelo pais.
Mas nem mesmo as imagens de paraliticos andando, cegos enxer-
gando e mortos ressuscitando faziam com que as pessoas parassem
para dar uma olhadinha. Descobrimos o quanto e verdadeira a ideia,
que se tem, de que os americanos, e principalmente os residentes em
Nova York, sao pessoas indiferentes. A piadinha da conversa entre
dois novaiorquinos retrata fielmente essa indiferenca.
O primeiro diz para o segundo:
- Minha mae teve um ataque cardiaco na Quinta Avenida.
O segundo responde:
- Nao diga. Quinta com 0 que?
Rejeitado pela classe media e branca dos americanos, 0 bispo, apos
quatro anos de murros em ponta de faca, repensou o papel da Igreja
Universal no pa~s e voltou as origens jogando sua rede na direcao do
, . . . , . . .
unlco pelxe que engo .e sua ~sca-o sotrlc o pelxe .atlno.
O ingles, como um demnio, foi expulso dos cultos, que passaram a
ser realizados num unico idioma: o portunhol. Comecamos entao a dizer
coisas rid~culas cc~mo "Dios te bendiga y te acompanhe, meu irmano".
Nesta sua volta as raizes, a Igroja passou a distribuir seus templos
entre as comunidades latinas do pais: a do BrooLlyn passou a ser dos
porto-riquenhos da area e a de Manhattan ficou para os brasileiros e
poucos americanos que restaram. Tambem foram inaugurados novos
templos na portuguesa New Bedford, na brasileirissima Newark e em
~iami' a Canaa cubana. E para mostrar que nao estavam brincando,
Contrataram Nelson Ned para uma serie de shows.
105
Os bons ventos voltaram a soprar e ja havia ate quem falasse em
concentracao no Madison Square Garden, a maior casa de shows da
cidade.
III
Durante o tempo em que fiquei no Brooklyn comecei, com a apro-
vacao da Igreja, um namoro com uma moca que servia como obreira.
Por dar as maiores of ertas que a Igreja arrecadava e por ser ela uma das
poucas americanas que freqentavam a igreja, H. era paparicada por
todos os pastores, inclusive pelo bispo. Quando demonstrou interesse
por mim, recebeu a bencao de todos. O fato de eu ser casado e pai de
dois filhos no Brasil era apenas um detalhe.
H. costumava me pegar para longos passeios de carro pela noite
de Nova York. E sempre apos os cultos iamos comer em Little Italy
ou Chinatown, ou passavamos a noite em longos bate-papos nos
barzinhos cabeca do Soho. Ela era uma moca muito carente e tinha
sempre uma expressao triste no rosto. Quando a conheci, ela estava
se dirvorciando de um fuzileiro naval que, na epoca, lutava na Guerra
do Golfo.
Depois da minha chegada a igreja, H., que so ia aos cultos durante
o dia, mudou seu horario de trabalho como obreira e passou a partici-
par de todas as sessoes noturnas. Era sempre a ultima a sair e so ia
embora quando eu ja estava prestes a fechar o templo. Sabendo que eu
dormia na igreja, muitas vezes ela voltava no meio da madrugada com
a desculpa de que havia esquecido os oculos ou a chave. Nao demorou
para que passassemos a fazer sexo. Nos transavamos em sua casa, no
seu carro, em um quarto no terceiro andar da igreja e sempre que
tinhamos alguma oportunidade. H. me dava roupas, dinheiro e comi-
da. Eu sabia que ela estava gostando de mim. E pequei pelo fato de
deixa-la ir adiante.
Na mesma epoca em que isso acontecia, voltei a ter os mesmøS
sintomas que quase me haviam matado dias antes de viajar para
Lisboa. Com a diferenca de que tambem passei a acordar durante a
noite, ensopado de suor, e a ter constantes crises de diarreia. Nao queria
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pensar no pior. Repetia para mim mesmo que era algum proLlema
intestinal causado pela mudanca de clima e que logo passaria. Para
piorar, emagreci visivelmente em questao de dias e ainda surgiram
algumas manchas nos pes e nas maos.
Nao sabia como procurar um medico. O meu ingles ia ponco alem
do good ~norning e gooa~ evening e, alem disso, alguem ja tinha me dito
que ilegais - eramos todos ilegais no pais - nao tinham direito nem
mesmo a receber socorro de emergencia em hospital publico. Uma
. ù .
mentlra como tantas outras que OUVI ao cnegar.
Eram os primeiros meses de 1991 quando, vendo que alguma coi-
sa estava errada comigo, resolvi escrever a fatidica carta para o pastor
Goncalves, que eu considerava meu amigo e confidente. Naquela epoca,
Goncalves era uma especie de Dom Lucas Moreira Neves. Ele presidia
o Conselho de Bispos no Brasil. Corria uma piadinha entre os pastores
de que nenhum integrante desse conselho sabia responder rapidamente,
sem gaguejar ou sem pedir tempo para pensar, o que vem primeiro na
Biblia, se o Velho ou o Novo Testamento.
Nao demorou muito para que eu voltasse a me sentir sufocado pela
Igreja. Graca estava certa quando disse que eu jamais me readaptaria
aos moldes da organizacao. Eu havia perdido o que eles chamam de
"primeiro amor". As escamas nos meus olhos haviam caido e agora eu
enxergava a Igreja como ela e. Este fenmeno e raro, mas quando
acontece e irreversivel.
Se eu nao conseguia reunir a familia, unica razao pela qual voltara
a Igreja, nao fazia sentido ficar mais tempo ali. Foi entao que, buscan-
do o conselho de um amigo, naquele momento em que estava tao
confuso - e confiando naquele papo furado de "ama 0 teu proximo
como a ti mesmo"-, escrevi para Goncalves. Contei-lhe tudo o que
havia feito e pedi uma orientacao. Evitando a palavra AIDS, escrevi
que pensava ter contraido "aquela doenca incuravel".
Pouco depois de colocar a carta no correio, eu ja me questionava se
havia feito a coisa certa. Mas estava disposto a arcar com as conse-
qencias Que me chamem de estopido, mas eu ainda pensava que,
mesmO se viesse a ficar doente, a Igreja ficaria do meu lado. Logo
descobriria que estava fatalmente errado.
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Sempre que me sentia triste andava sem destino pela cidade
durante horas a fio. Para mim, as ruas de Nova York sao um otimo i
logar para curar problemas emocionais. Os Yellow Cal~s, as pessoas que
me ignoram, os rappers, o Times Square, os botequins da rua 46,
a esquina da 42 com a Oitava Avenida, a estatua de Jose Bonifacio
nos fundos da biblioteca publica- "cortesia dos Estados Unidos do
Brasil" - tudo e uma otima terapia.
Quase sem perceber, acabei no alto do World Trade Center. Por
horas fiquei sentado ali, no topo do mundo, vendo a cidade aos meus
pes e evitando pensar nos meus proLlemas. Acreditava que daria a i
volta por cima do mesmo jeito que ja tinha dado tantas outras vezes. 'i
Pensava estas coisas quando vi um rapaz de rosto familiar se apro- ~
ximar de mim. Eu tinha certeza de conhece-lo do Brasil, mas nao j
consegu~a me lembrar de onde seria. Coincidentemente, ele ficou
~parado ao mou lado olhando a cidade na mesma direcao que eu olha- ~
l l va. Ainda na duvida, puxei uma conversa em portugues e logo vi que I
estava certo. Ele era um cantor brasileiro. Disse-me que estava gra- !
I vando em Los Angeles e resolvera dar uma parada em Nova York. ~
Nao consegui lembrar o nome dele e fiquei sem jeito de perguntar. I
l Nos quinze minutos que conversamos fiz de conta que sabia quem !
l ele era, mas na verdade nao tinha a m~nima ideia. A caminho de casa, !
l na tentativa de lembrar o seu nome, fui cantarolando a sua musica
l que tinha sido um sucesso no Brasil, uma versao de Hei, J~de. "e isso", I
l pensei, "Kiko Zambianchi".
l ~ Degois de o bispo Macedo me expulsar da Igreja, foi morar na casa
l de Eliane ate encontrar um lugar para ficar. Mas logo Eliane, uma !
obreira, passou a sofrer pressao da Igreja para me colocar na rua. Sen- !
i ~do, inclusive, ameacada de ser suspensa dos servicos. Eu sabia o quan- I
to aquilo significava para ela e nao queria que o fato de me acolher a
mpedlsse de exercer o seu trabalho vocacional. Por isso resolvi sair,
mesmo que sem saber para onde iria.
Com a voz cortada por solucos, Eliane me pediu para que a per-
doasse por nada poder fazer para me ajudar. Ela me deu uma nota de
cem dolares e um beijo na testa. Fez uma referencia a historia de Ha-
gar - a mae do filho bastardo de Abraao- e disse que Deus haveria de
10R
mandar seus anjos para me proteger. Fiz mencao de um debochado
sorriso incredulo e sai, carregando nas costas a mochila de roupas que
o pastor Natanael havia rasgado.
Diante da situacao, H. terminou nosso namoro. Nas duas noites
que se se~guiram, dormi nos frios bancos do metr da rua 42. Varias
vezes, durante a noite, a policia me fez levantar, porque era proibido
deitar nos bancos das estacoes. Alguns mendigos, que julguei mais
experientes, me disseram que durante a madrogada eu deveria dor-
mir nos trens que faziam a linha Brooklyn-Qucens, para nao ser per-
turbado pela policia.
Nao deu muito certo. A primeira e unica vez que fiz isso acordei
com uma faca no pcscoco e o sujeito gritando que eu nao olhasse para
sua cara, ou ele seria obrigado a me matar. Resultado: perdi setenta
dolares e minha mochila. Fiquei so com a roupa do corpo. Sem qual-
quer documento ou outra alternativa, tive de pedir esmolas - por
mais que aquilo me incomodasse.
Algumas pessoas, ao me ver pedindo na porta da cateUral de Sao
Joao, O Divino, me disseram para procurar ajuda no consulado bra-
sileiro. Uma senhora americana chegou a me levar ao escritorio do
consulado, na Quinta Avenida. Mas, chegando la, a eficiencia que
caracteriza o servico publico brasileiro nada pde fazer para me aju-
dar. Aquela senhora, entao, me levou ao departamento de assistencia
social de Nova York.
Os assistentes sociais me conduziram a um stelter, lugar em que
vivem os homeleJs (mendigos) da cidade. O stelter para 0 qual fui envi-
ado era o maior da cidade. Funcionava num antigo quartel na avenida
Bedford, no BrooLlyn, e tinha sido construido durante a Segunda
Guerra para treinar os civis que atendiam ao chamado do Tio Sam.
Logo ao entrar, observei pessoas visivelmente drogadas e com
disturbios mentais falando soxinhas enquanto andavam pelo patio.
Depois de preencher uma ficha, recebi roupas de cama e uma toalha.
Depois, com passos lentos, comecei a escalar as escadas que levavam
para o terceiro andar, onde se localizava a minha cama. Na medida
em que eu caminhava naquele longo corredor escuro, pessoas sujas e
mal-encaradas saiam a porta de seus dormitorios para assistir a minha
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