Nos Bastidores do Reino

A Vida Secreta na Igreja Universal do Reino de Deus


                  
                  CAPITULO QUATRO
                  APESAR DE VOCES
    
                         I
    
    Ao informar pastor Paulo que estava deixando a Igreja para tentar
    reconstruir minha vida, foi tratado com menosprezo e gargalhadas de
    cinismo. Cumprindo as ameacas que me havia feito, ele me deu um
    mes de salario e trinta dias para entregar o apartamento da Igreja. Ele
    tambem se negou a fazer minha mudanca de volta a Salvador.
    
    Apesar disso continuei firme e seguro na minha decisao. Entao,
    ele me fez assinar alguns documentos que me impediam de abrir um
    processo trabalLista contra a Igreja, acao em que muitos pastores
    tinham sido bem-sucedidos. Em troca, quis uma carta da Igreja de-
    clarando que eu havia prestado contas de cada centavo recebido em
    nome dela e que estava saindo por livre e espontanea vontade. Fazen-
    do isso, eu me precavi de ser a proxima vitima das taticas baixas que
    a Igreja usa para desmoralizar os que desistem.
    
    Antes que eu saisse, o pastor Paulo me disse que eu nao estava
    preparado para o mundo la fora e que eu voltaria rastejando, mas nao
    teria uma segunda chance. Tentando mostrar uma coragem e deter-
    minacao que nao tinha, respondi a ele, num tom de voz que me
    surpreendeu, que nada la fora me faria metade do mul que a Igreja me
    fizera, que arrumaria um trabalho e que seria feliz, porque, apesar
    deles, eu ainda acreditava em Deus. Degois sai batendo a porta.
    
    Apesar do medo do futuro, eu estava orgulhoso de mim. Havia
    feito tudo aquilo sem 0 suporte da familia ou dos amigos. Mas Graca,
    minha mulLer, nao apoiava minha decisao. Ela achava que eu deveria
    ficar la.
    
    Deixar de ser pastor naquele dia foi como se uma carga saisse de
    meus ombros. Andei por horas a fio pelo centro da cidade oLservando
    as pesscaS e me sentindo uma delas. Entrei numa loja e nao esperei
    chegar em casa para trocar aquelas roupas sisudas que usava por jeans,
    
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    tenis e camiseta. Terminei a tarde em um cinema da avenida Paulista
    comendo pipoca e assistindo Batwan como qualquer jovem de minha
    idade. Mas em algum lugar dentro de mim existia uma ponta de tris-
    teza pelo sonho ter chegado ao fim.
    
    Nos jornais que comprava para procurar emprego, o colegial era o
    minimo exigido. Eu estava tao desintormado do mercado de trabalho
    que fiquei surpreso quando alguem me disse que antes de mais nada
    eu precisava da carteira profissional.
    
    Depois de ter sido dispensado em todos os lugares em que foi,
    cheguei a conclusao de que a unica funcao em que eu me enquadrava
    era a de office-boy. Era vergonhosa a cena: eu numa fila de emprego,
    aos 23 anos, competindo com candidatos cuja idad  variava cle catorze
    a dezessete anos. Mas vergonhoso mesmo foi quando, ao chegar a
    minha vez de ser entrevistado, a mocinlla da mesa, sabendo que eu
    estava procurando meu primeiro emprego, cleu uma gargalhada e se
    saiu com essa:
    
    Marte ?
    
    - Nossa, meu filho! Onde voce esteve nestes ultimos anos, em
    
    Os moleques na fila adoraram.
    
    Vendo que nao conseguiria emprego pelas vias normais, ingressei
    no bloco daqueles que ficam mandando lacrimosas cartinhas com pe-
    dirlos de emprego para o governo ou presidentes de grandes empresas.
    Enviei tres cartas: uma para o presidente Jose Sarney, outra para o
    governador Orestes Quercia e uma outra nara o r~resiAr n~~ ~ lT~r;~
    Helio Smidt.
    
    _ ._ ~,~.~ ~ r.~lL~ ~d V~rlg,
    
    Ocupado com a privatizacao da Vasp e com as relacoes Sao Paulo-
    Israel, Quercia foi o unico que nao respondeu. Jose Sarney, apcsar de
    tambem ocupado com a ferrovia Norte-Sul e com as comemoracoes
    do bicentenario da Revolucao Francesa, ainda arrumou tempo para
    se desculpar e dizer que nao podia ajudar. Helio Smidt mandou que
    eu me apresentasse ao setor de pcssoal da companhia, no aeroporto de
    Congonhas.
    
    No mesmo dia compareci a Varig, onde fiz um daqueles testes
    psicotecnicos em que o nosso possivel grau de insanidade e medido.
    Degois de passar por esse pequeno "vestibolar", fui dispensado com a
    
                         ~4
    
    l
    
    informacao de que, se os profissionais de recursos humanos me julgas-
    sem com Q~ suficiente para varrer o chao e servir cafezinhos, entao eu
    seria avisado pelo correio.
    
    Ao chegar em casa encontrei Graca chorando ao lado da irma, que
    estava acompanhada do marido, tambem pastor da Igreja Universal.
    Eles eram os sorridentes portadores de uma carta assinada pela advo-
    gada da Igreja me intimando a desocupar o apartamento que eu havia
    "invaclido". Caso ignorasse a ordem, dizia a carta, seria "despcjado
    por acao policial". Conllecendo a Igreja profundamente como eu co-
    nhecia, sabia que eles nao estavam bleLando.
    
    A minha mulher, entao gravida de dois meses, e minha filha de
    quatro anos foram levadas para a casa da irma. Proibidos pela Igreja,
    eles ficaram impedidos de me acolher. Na roa com a modanca, eu fui
    recebido por uma senhora idosa que era obreira da Igreja. Comovida
    com a minha situacao, ela me deixou clormir no soLa de sua sala ate
    que eu me afirmasse.
    
    Naquela situacao cheguei a pensar em voltar atras na minha deci-
    sao. Pensei em seguir o exemplo daquele ministro militar, que jogou
    as favas os escrupulos da consciencia, e adotar de vez o perfil fariseu
    exigido para ser pastor da Universal.
    
    Eu so ficava imaginando aonde estaria Deus naquela historia toda.
    Afinal de contas tudo comec,ou porque eu pensei ter ouvido um chama-
    do dele. A verdade era que eu comecava a duvidar da existencia desse
    Deus. A Igreja Universal que me deu a fe foi tambem quem a tirou.
 
    





    
    Eu estava vindo de mais uma fracassada procura por emprego e
    para passar o tempo entrei numa I ivraria e acabei comprando um livro
    que me atraiu pelo titulo. Seria aquele o primeiro livro nao religioso
    que leria. Nem por un1 momento imaginei que aquele mesmo livro
    me acompanharia ate hoje, atravessando comigo os momentos mais
    dificeis. Apcsar de nao ter sido escrito para esse fim, I;eliz Ano Velho,
    de Marcelo Rubens Paiva, foi o meu manual de auto-ajuda.
    
    Com o livro embaixo do braco, continuei minha caminhada pela
    avenida Ipiranga, em direcao ao metr da Republica. Era 0 final da
    tarde de 31 de dezembro, e a animacao do reveillon tomava as pessoas
    nas rnas.
    
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    Enquanto andava, tudo o que tinha em mente era Gabriela, que eu
    nao via ha mais de uma semana. A frieza com que eu era tratado todas
    as vezes que ia na casa de minha cunhada fez com que eu recebesse a
    mensagem de que nao era bem-vindo ali. Entao eu decidi evitar essas
    visitas. A ultima vez que vi minha filha tinha sido pouco antes do
    Natal, quando levei um presente para ela. Desde seu nascimento, se-
    ria aquele o primeiro Natal que passariamos separados.
    
    Ao passar pela entrada do edificio Italia, fui atropelado por uma
    multidao de smoking e tubinhos pretos que aparentemente se diri-
    gia a alguma festa de confraternizacao de fim de ano. Na esquina com
    a avenida Sao Luis, fui atingido por uma chuva de papel picado
    e serpentina, atirados pelos funcionarios dos escritorios daqueles
    ed if icios.
    
    Alheio a tudo isso, e com a cabeca cheia de confete, continuei a
    minha caminhada ao metr. A felicidade daquelas pessoas nao me
    incomodava, mas eu era indiferente porque, ao contrario delas, nao
    tinha motivos para comemoracoes. Repetindo os dois anos anteriores,
    1988 tinha sido um pessimo ano e tudo o que eu queria era que meia-
    noite chegasse logo. Acreditava que o cheiro de novo de 1989 traria
    algumas mudancas positivas. Bobagem. Atravessei a tempcstade de
    papel jurando a mim mesmo que nunca mais passaria um fim de ano
    como aquele. Sobreviveria e faria com que dias melhores viessem.
    
    Mas desta vez confiando em mim mesmo, em vez de entregar tudo
    nas maos de Deus.
    
                         II
    
    Quando a Varig me contratou, passei para a fase seguinte de
    minha vida. Apesar de ter entrado na empresa ganhando pouco mais
    de um salario minimo e exercendo a funcao de "auxiliar de servicos
    gerais", eu me sentia a pessoa mais feliz do mundo. Afinal, tinha
    um emprego honesto, com carteira assinada e tudo o mais. Eu ado-
    rava trabalhar na Varig. No pouco tempo em que la trabalhei, re-
    cebi promocoes, alem de inumeros cursos de aperfeicoamento pro-
    fissional no Brasil e no exterior.
    
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    :]
    
    ~ .
    
    =
    
    Eu e Graca ainda estavamos tentando organizar a nossa vida quan-
    do Raphael nasceu, em marco de 1989. Algumas coisas nos ja tinha-
    mos conseguido, como alugar um pequeno apartamento na Cohab de
    Itaquera e colocar Gabriela numa escola. Com a chegada de um novo
    bebe, as despesas naturalmente aumentaram e nem com um segundo
    emprego noturno eu estava conseguindo manter as despesas. A solu-
    cao foi Graca ir procurar emprego. E la foi ela foi trabalhar como caixa
    num supermercado da praca Roosevelt.
    
    Me entristecia ter de deixar as criancas numa creche, mas nao
    encontramos outra saida. Todas as manhas, por volta das seis horas,
    com as criancas enroladas em mantas e cobertores, nos enfrentavamos
    a gelida neLlina da Zona Leste em direcao a estacao de trem. Nao
    demorou muito para que Raphael, com apenas tres meses, fosse parar
    numa UT1, vitima de pneumonia.
    
    Apesar de nunca ter falado nada diretamente (nos tinhamos um
    serio proLlema de comunicacao), Graca me responsabilizava por aquela
    situacao. Pela sua vontade, eu ainda estaria na Igreja. "Ruim com ela,
    pior sem ela", filosoLava.
    
    A falta de amor na nossa relacao tambem contribuiu para o desgas-
    te daquele casamento, que tinha a estrutura de uma bolha de sabao.
    Num espaco de seis meses partimos do primeiro encontro para 0 casa-
    mento. Ela se apaixonou por mim e recebemos a bencao de seus pais,
    que nao me conheciam e tamponco conheciam a minha familia. Tudo
    o que sabiam de mim era que eu pertencia ao glorioso quadro de
    pastores da Igroja Universal. E isso era suficiente.
    
    Em uma situacao em que romeus e julietas veem seus relaciona-
    mentos abalados, o que esperar de uma uniao como a nossa? Aos pou-
 
    





    cos fomos nos afastando um do outro, a ponto de falarmos somente
    o neceSSariO Graca agora passava os dias contando as criancas como
    era linda a Bahia e que em breve "eles" voltariam para la
    
    Eu sabia que a estava perdendo e nao fazia nada para traze-la de
    volta Apcsar de achar que nao a amava, eu era tao dependente dela
    quanto ela de mim. Naqueles terriveis ultimos anos, ela havia sido a
    minha unica fonte de forca. A unica pessoa que ficou comigo, me
    dando sempre 0 que nunca recebia, me oferecendo sempre 0 seu amor.
    
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    Incondicionalmente. Nos momentos decisivos a sua presenca calada
    foi mais valiosa do que todos os conselhos que podesse me dar. Nao.
    Eu nao queria perder Graca. E esse medo nao era outra coisa senao o
    egoismo tentando se passar por amor.
    
    Em meio a essa crise conjugal, conheci uma moc,a que era em tudo
    diferente de Graca e de qualquer outra mulher que eu conhecera. Eu a
    conheci no setor de crediario de uma loja de roupas, na Barao cle Ita-
    petininca. Ela nao tirava os olhos de mim, o que ja estava me deixan-
    do constrangido, pois eu nunca fui do tipo paquerador.
    
    Vendo que eu nao respondia as suas investidas, ela veio a mim
    fazendo uma pergunta sem sentido a pretexto de puxar conversa. Dis-
    se-me que seu nome era Eunice (talvez estivesse mentindo) e quc era
    estudante universitaria (ela estava mentindo). Na medida em que le-
    vamos acliante a conversa, eu clescobri que aquela moc,a de roupas
    mundanas e maquilagem deJczebel era uma jovem alegre e que fala-
    va pelos cotovelos sem dar importancia a quem estivesse ouvindo.
    
    Ao sair dali fomos a um barzinllo e, depois disso, ela mc convidou
    para ir a um daqueles hoteis pulguentos do centro da ciclacle. A cami-
    nho do local, eu ia me recriminanclo por ter aceitado aquele convite.
    Mas nao tive outra escolha. 0 que fala um homem a uma mulher que
    com todas as letras o convida para o sexo? O jeito com que ela fez o
    convite, olhando-me pelo canto dos olllos delineados por uma sombra
    azul que combinava com a blusa de cetim da mesma cor e brejeira-
    mente passanclo a lingua nas bordas do copo de chope, parecia uma
    nao convincente cena de seducao do cinema nacional.
    
    Apesar cle mal decorada e mal interpretada, a atua,cao dela elevou
    meu ego e fez com que eu me sentisse tao irresistivel quanto um gala
    cle cinema. Um Newman. Um Connery. Um Richard Gere. Ou um
    Tony Ramos (so para combinar com o cenario do botcquim). Mas
    agora, enquanto andavamos a caminho do hotel, eu me sentia tao pa-
    naca e atrapalhaclo quanto Woody Allen. Diversas vezes tive vontade
    cle parar, pedir clesculpas, fazer o pagamento e fugir. Antes, porc'm,
    que podesse fazer isso, chegamos ao hotel. Eu tromia tanto que preci-
    sei me amparar no corrimao para subir as escadas que nos levaria ao
    segundo andar, onde estava localizado o quarto. ELI nunca havia feito
    
    sexo com uma outra mulLer. Eu sabia que aquilo seria um desastre.
    Tudo em que pensava era na experiencia que o jeito malandro da moca
    nao conseguia esconder. O seu jeito de ser me passava a imagem de
    que ela sabia tudo sobre o assunto, de A a Z, incluindo o Y e o W. A
    imagem era a de que ela ja havia sido virada pelo avesso, usada e
    aLusada. E o que faria eu, "papai-mamae"?
    
    Para meu desespero, entramos no quarto. Ela sugeriu que tomas-
    semos un1 banho, pois "gostava dos corpos com cheiro de sabonete".
    ELI primeiro. Ela faria o mesmo em seguida. Ao sair do banho, tudo
    o que encontrei foi minha roupa espalhada pelo chao e a porta aberta.
    Ela rouLara 0 pouco clinheiro que eu carregava no bolso e algumas pOLI-
    cas roupas que eu havia compraclo para as criancas. Apesar de me sentir
    aliviado por nao ter tido relacoes sexuais com ela, fiquei arrasado por
    me deixar cair num truquc que, descobri mais tarde, era mais velho
    que andar para a frente.
    
    Exatamente duas semanas depois desse incidente, rccebi uma
    inesperacla ligac,ao no escritorio. Era Eunice. Lamentou o que ti-
    nha feito, tentou explicar, disse clue eu era "um rapaz cle ouro" e
    que nao merecia aquilo. Marcamos, entao, um novo encontro para
    depois do expediente. Ao chegar ao bar, ela ja me esperava. Procu-
    rei ser o mais rapido possivel e dessa vez tentei fechar meus CJUVi-
    dos ao seu canto de sereia. Ela disse que tinlla me rouLado porque
    estava com o aluguel venciclo e sem dinheiro para comer. Com
    minha experiencia de pregador, tentei Ihe passar un1 sermao argu-
    mentando que tcr proLlemas financeiros nao era motivo para sair
    por ai roubando os outros. Eu Ihe disse que ela nao pcnsara nos
    meus problemas e que aquelc dinheiro podia ser vital para mim.
    Ela me pediu perdao c devolveu as roupas das criancas que havia
    ronbado O dinheiro ela tinha usado para pagar a conta de luz. No
    final, estavamos bebenclo e falando bobagens, como no dia em que
    nos conhecemos.
    
    Depois de trocarmos confidencias e desgracas, terminamos no
    mesmO hotel em que haviamos ido na primeira vez. Quando tranca-
    mos a porta do quarto, Eunice foi logo cheirando cocaina e, perceben-
    do que me recusava a acompanha-la, acendeu um cigarro de maconha
 
    





    
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    e me deu. Tentei argumentar que havia fumado maconha no passado e
    que larguei por ter me viciado.
    
    - Voce e muito bom para ser verdade - disse Eunice com garga-
    lhadas histericas ja provocadas pela droga. - Deixa de bobagem,
    rapaz, maconha nao vicia ninguem nao. Isso e so um calmante, e so
    para relaxar.
    
    Aceitei a maconha e fizemos sexo. Eunice viera com a mae, do
    Maranhao, para morar em Santos, no litoral paulista. Aos dezesseis
    anos, sem familia para socorre-la, ela comecou a se prostituir na zona
    do porto da cidade, ocupando a vaga aberta com a morte da mae.
    
    Sua paixao era cantar e achava que um dia seria reconhecida. E,
    justica seja feita, ela cantava bem. Disse que havia homens que paga-
    vam so para ouvi-la cantar... tudo bem, nua.
    
    Numa de suas rondas no porto, ela conheceu um sujeito que Ihe
    prometeu emprego para cantar em Sao Paulo. Com essa promessa,
    pegou as poucas roupas que tinha e deixou Santos.
    
    Na verdade, o trabalho que o sujeito lhe deu era exercido num
    pe-queno quarto no Itatiaia, edificio de prostituicao no centro da
    cidade. Mesmo assim Eunice nao desistiu de seu sonho de ser cantora
    e acabou conseguindo um bico nos finais de semana em uma churras-
    caria da Radial Leste. Ali ela se apresentava cantando o repertorio de
    Alcione. Mas o que ela adorava mesmo era rock e tinha paixao quase
    fanatica por Raul Seixas. Porem, como sua voz era de cantora de
    samba, tinha de se contentar com Alcione. Se falasse ingles, poderia
    tentar Tina Turner.
    
    Aos poncos fui me envolvendo com Eunice. Nao conseguia passar
    mais de dois dias sem transar com ela. Pelo menos tres vezes na sema-
    na a gente se encontrava num hotel na Consolacao para passar a noite
    entre sexo, drogas e Raul Seixas. Para Ihe dedicar mais tempo larguei
    o emprego noturno e isso somente serviu para aumentar os meus pro-
    blemas financeiros. Do ponco que ganhava para sustentar a familia,
    tinha que tirar E,ara comprar a cocaina de Eunice.
    
    Eu sabia que esta era a unica razao de ela estar comigo. Sabia que,
    no momento em que parasse de prover-lhe com a droga, ela me
    abandonaria.
    
    90
    
    Eu acompanhei Eunice em algumas das poucas apresentacoes que
    ela conseguia nas chorrascarias da Zona Oeste. Naquele ambiente em
    que se misturavam fumaca de cigarro e gordura de carne, ela, acom-
    panhada somente de um playlback, cantava para uma plateia que entre
    conversa alta e gargalhadas nem mesmo se dava conta de sua apresen-
    tacao. Era preciso que no final de cada musica eu puxasse as palmas.
    Eunice achava que nunca seria reconhecida em Sao Paulo. Ate o final
    do ano juntaria um dinheiro e iria primeiro para o Rio de Janeiro e
    depois para a Europa. Dizia que os gringos adoravam as mulatas bra-
    sileiras e que tinha uma amiga se dando muito bem imitando Clara
    Nunes na Holanda.
    
    Meu relacionamento com essa moca acendeu o estopim de uma
    bomba que levaria alguns anos para explodir. Numa noite, apos mais
    uma de suas apresentacoes, fomos a uma festinha em Santana, na casa
    de um de seus amigos. Como nao podia deixar de ser, esses seus ami-
    gos cheiravam coca e ao chegarmos la a droga estava sendo servida
    com fartura. Ate entao eu me recusava a usar cocaina, preferia me
    limitar a maconha. Mas naquela noite, talvez para nao passar a ima-
    
    . `` ,. . . . .
    
    gem oe careta, cnelrel cocama.
    
    Depois de ter cheirado, me senti a pessoa mais estupida do mundo.
    Fiquei ali sentado no soLa nao sei por quanto tempo, lutando para pen-
    sar em alguma coisa, mas meu cerebro estava mergulhado num vazio,
    num enorme vacuo. Eu nunca me senti daquele jeito em toda a minha
    vida. Por mais que tentasse, nao conseguia pensar. Nao conseguia apro-
    var ou reprovar o que acabara de fazer. Nao tinha medo de morrer e
    nem mesmo a alegria excitante que algumas pessoas dizem sentir ao
    usar coca. Tudo o que sentia era uma dormencia da cabeca aos pes e um
    peso tao grande sobre o corpo que me deixou por um longo tempo na
 
    





    mesma posicao, impossibilitado de mover um dedo sequer.
    
    Era notorio entre os presentes que eu usava a droga pela primeira
    vez. Aos poucos comecei a perceber pessoas me abracando e dando
    tapinhas na minha cabeca, dizendo que era assim mesmo e que em
    breve eu estaria tao descontraido quanto eles.
    
    Nem bem havia saido do transe comecaram uma outra rodada de
    cocaina Desta vez a droga seria in jetada na veia. Sentamos em circulo
    
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    no chao da sala e alguem apareceu com uma serinca que lentamente
    foi passando de mao em mao. Eu nao sabia por que nao tinha forcas
    para dizer nao, para me levantar daquele ILIgar e ir embora. Se eu nao
    queria fazer aquilo, por que, entao, fiz? Como gostaria de ter uma
    resposta!
    
    Nos dias que se seguiram aquela noite eu vivia com a estranha
    sensacao de que alguma coisa muito ruim estava para mc acontecer. E
    sempre que eu me sentia culpado, era automatico, a minha mente
    vinha logo com alguma condenacao biblica Desta vez a maldicao era:
    "O salario do pecado e a morte". Era isso dia e noite martelando a
    minha cabeca.
    
    Decidi que deixaria de ver Eunice e pararia de usar drogas. Nao
    consegui esconder de minha mulher o que estava acontecendo. Vendo
    o meu estranho comportamento, ela comecou a me fazer perguntas,
    c aos poncos comecei a compartilhar com ela todos os meus segredos.
    Inclusive aqueles que tinham poder suficiente para implodir meu ca-
    samento. Alem de falar sobre Eunice e o uso de drogas, falei sobre o
    relacionamento sexual mantido por varios anos com o meu colega
    pastor, que ela conhecia muito bem. Dupla traicao.
    
    O alivio que senti enquanto vomitava todo aquele lodo que por
    anos carregara dentro mim nao compensou o sofrimento de ter de
    encara-la nos olhos enquanto despejava aquelas coisas. Pela primei-
    ra vez me dirigia a ela sem mentiras e sem a mascara que no decorrer
    de cinco anos de casamento ela imaginara ser a face do marido. Mas
    achar que seria perdoado e os meus lances de infidelidade jogaclos
    no mar do esquecimento foi uma das minhas ultimas cloces ilusoes.
    Graca nao me perdoou, muito menos teve simpatia pelas lagrimas
    que eu derramava, enquanto professava arrependimento. Ela me
    odiou. Seu rosto palido, de olhos embacados, parecia petrificado pelo
    nojo Unico sentimento que ela conseguia ter por mim naquele
    momento.
    
    Graca tinha dezoito anos, um ano a mais que eu, quando nos co-
    nhecemos. Na epoca ela era uma obreira que se preparava para entrar
    na faculUade e namorava um jovem professor de natacao. Com a pres-
    sao da Igreja para que eu arrumasse um casamento, comecei entao a
    
    doixar visivel que me interessava por ela. O fato de ser pastor, posicao
    que e - ou pelo menos deveria ser - sinnimo de confianca e respeita-
    bilidade, fizera com que ela se apaixonasse por mim e terminasse o
    namoro, com o apoio da mae e do resto da familia. Poucos meses
    depois, estavamos casados. Gabriela nasceu no mesmo ano e juntos
    tentavamos passar para o povo a ideia de que eramos uma perfeita
    fam~lia crista. Porem, nao eramos felizes Apcsar de que nunca briga-
    mos, existia um grande vazio no nosso casamento. Um vazio que por
    diversas vezes, das mais variadas maneiras, Graca tentou preencher e
    nunca conseguiu. Eu sempre achei que nao a amava e que havia casa-
    do com ela sob pressao.
    
    Na medida em que meu desapontamento com a Igreja Universal
    ia crescendo, minha indiferenca por Graca seguia na mesma escala
    Para mim, ela personificava uma cruz imposta pela Igreja sobre meus
    ombros - uma craz que eu teria de carregar ate os ultimos dias da
    minha vida. Nunca escondera que minha verdadeira paixao tinha sido
    Liz, cle quem eu ainda carregava uma fotografia na carteira, depois
    de todo aquele tempo. Nos tres anos que se passaram desde aquela
    despedida na rodoviaria, eu havia conservado a imagem de Liz me
    abracando e implorando em lagrimas que nao a esquecesse e voltasse
    para busca-la.
    
    Numa ocasiao, apos conversar sobre Liz com um amigo, a saudade
    bateu e eu entrei num jatinho da Nordeste Taxi Aereo com destino a
    Paulo Afonso. Chegando la, bati palmas na porta da casa de Liz e a
    mae dela apareceu na janela. Nao me convidou para entrar e falou que
    Liz havia fugido para Roraima com um homem que "tinha idade para
    ser o pai dela" e que fazia sete meses que nao recebia qualquer noticia.
    Desiludido, voltei para Salvador Apesar de saber que eu havia ido
    procurar uma ex-namoradinha no interior do estado, a unica coisa
    que Graca me perguntou quando voltei para casa foi se podia por a
    mesa do jantar
    
    Tudo ela agentou ao meu lado: falta de atencao, de amor, de um
    carinho que fosse. Nao me lembro de Ihe ter uma unica vez elogiado a
    comida. Nem quando tentava as receitas mais dificeis, como o "fran-
    go cremoso da Raquel", que ela aprendeu assistindo aquela novela da
 
    





    
        





    l
    
    Odete Roittman. Como uma gueixa, sempre serviu silenciosa. E par-
    tiu dela a ideia de colocar as criancas numa creche e ir trabalhar das
    oito da manha as seis da tarde como caixa de supermercado.
    
    Agora, depois de Ihe contar tudo, nao reconhecia a mulher que, na
    minha frente, aos gritos, dizia nao sLlportar minha falsidade e minha
    indiferenca. Com o dedo no meu nariz, me acusou de ter destruido
    sua vida e matado sua mae, a unica pessoa que realmente a amara; de
    Jogar por terra todos os seus planos e de reduzi-la a um escudo para
    proteger meu mau carater e minha homossexualidade. Por fim, acu-
    sou-me de uma proeza talvez inedita: odia-la tanto a ponto de me
    casar com ela. Mandando que calasse a boca todas as vezes que tentava
    dizer alguma coisa, comecou a quebrar pratos e copos, atirando-os
    contra mim. Assistindo toda a cena do canto da sala, as criancas ti-
    nham os olhos arregalados e assustados. Como dois bichinhos.
    
                         III
    
    Naquela manha, quando eles viajaram de volta a Salvador, percebi
    que a partir daquele momento estava realmente sozinllo. As noites
    eram arrastadas e solitarias. O remorso e a saudade de meus filhos nao
    me deixavam dormir. Apesar de me sentir profundamente triste, nao
    recorri mais a nenhum tipo de droga. Procurava encarar meus proLle-
    mas lucidamente e encontrar uma solucao para aquela situacao.
    
    Como todo marido abandonado, descobri que amava minha mu-
    lher. Eu a amara todo o tempo e nunca tinha percebido. Ela era a mu-
    lher ideal: perfeita esposa e mae. Nunca deveria te-la deixado partir.
    
    Pensando que nunca e tarde para ser feliz e ignorando o jeito como
    a havia tratado todos aqueles anos, liguei para ela na Babia e, choran-
    do ao telefone, declarei meu amor e meu arrependimento por tudo
    que havia feito. Pedi uma chance e sugeri que se ela nao quisesse
    voltar a Sao Paulo eu pediria a minha transferencia para Salvador.
    Apos um longo silencio, ela me respondeu que nao era mais a mesma
    e que depois de tudo que Ihe revelei seria muito dificil convivermoS
    como marido e mulLer. Mas nao me descartou completamente. Exis-
    tiam duas criancas naquela historia e ela tinha de pensar nelas.
    
                         94
    
    i
    
    Uma das coisas que eu achava que trariam Graca correndo de volta
    para mim era meu retorno a Igreja Universal. O simples pensamento
    de voltar a portar coleiras depois de ter conquistado a liberdade me
    fazia tremer. Mas depois de pensar no assunto resolvi voltar, se nao
    como pastor, pelo menos como obreiro.
    
    Na epoca do meu retorno, a Igreja estava em polvorosa. Era perio-
    do de eleicao e todos estavam mergulhados no processo eleitoral. O
    bispo Macedo dizia ter recebido uma mensagem celestial em que o
    Criador em pcssoa, com a mesma intimidade com que se dirigia aos
    seus profotas nos primordios da humanidade, ordenara que se apoiasse
    Fernando Collor de Mello para a Presidencia da Republica, pois, ain-
    da de acordo com o Todo-Poderoso, ele, Collor, era o melhor candida-
    to para 0 pais e 0 unico capaz de derrotar 0 "anti-Cristo"- leia-se Lula.
    Como todos nos na epoca, o Senhor dos Exercitos ainda nao conhecia
    PC Farias. Errar e divino.
    
    O Bispo era um dos maiores cabos eleitorais de Collor (abaixo de
    Jeova, e claro). Ele fazia reunioes e se deixava fotografar vestindo
    camisetas do PRN. E no melhor estilo "aiatoloide", proibiu todos os
    pastores e obreiros de votar em qualquer outro que nao fosse o "esco-
    lhido", e ameacou: "Quem nao e por mim e contra mim". Entende-
    mos a mensagem.
    
    Naqueles poncos dias em que estava de volta percebi que o clima
    ali dentro havia piorado muito desde a minha saida. Os cultos reli-
    giosos naqueles meses de 1989 haviam se transformado em comicios
    eleitorais com o pulpito transformado em palanque onde se reveza-
    vam os candidatos proprios da Igreja e os que eram apoiados pelo
    bispo Pregacao do Evangelho era so um detalhe.
    
    O resultado das urnas com a eleicao de todos os candidatos lancados
    ou apoiados pela Igreja revelou ser o Bispo um lider com extraordinario
 
    





    poder sobre os seus seguidores. O mesmo poder que ja vimos em ele-
    mentos como Jim Jones e David Koresh, nos Estados Unidos e, mais
    recentemente, como Shoko Asahara, no Japao. Edir Macedo e mais do
    que um lider espiritual, ele e o opio do seu povo.
    
    A ida do pastor Paulo para Portugal me incentivou a voltar a ser
    pastor fora do pais. Eu resolvi fazer isto como uma desesperada tenta-
    
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