Nos Bastidores do Reino

A Vida Secreta na Igreja Universal do Reino de Deus


    A noticia de que poderia fazer as malas me veio como um so-
    pro de vida. Isso fez ate com que eu pensasse em comecar tudo de
    novo. Afinal de contas, a peUra no meu caminho era Rodrigues-
    longe dele as coisas melhorariam. Quem sabe poderia ate largar
    as drogas e me dedicar a minha mulLer e filha. Talvez podessemos
    ser uma familia feliz, como sempre haviamos sonhado.
    
    Uma outra razao de eu querer fugir da Bahia era aquele rela-
    cionamento que mantinha com o meu amigo pastor, algo que
    havia comecado quando eu ainda era um menino e que ja se es-
    tendia por quatro anos, mesmo apesar do fato de que nos dois ja
    eramos casados e pais de filhos.
    
    Na verdade eramos dependentes daquela relacao. Quando
    estavamos juntos, era o unico momento em que eramos nos
    mesmos. Sem mascaras. Porem, nos sabiamos que estavamos
    romando contra a mare e havia uma necessidade de p“r um ponto
    final naquela dependencia mutua que nos trazia tanta culpa e
    vergonha.
    
    Nos nao entendiamos o que se passava conosco. As vezes, che-
    gava a pensar que estavamos possuidos por um daqueles dem“-
    nios que expulsavamos. Homossexualidade era intoleravel na Igre-
    ja. Nas nossas pregacoes diziamos que os gays quebravam o plano
    divino da procriacao, eram falsos ao corpo, sexualmente defei-
    tuosos e condenados a morte eterna no lago de fogo e enxofre.
    
    Essa era a mais grosseira das nossas contradicoes, uma vez que
    existiam pastores homossexuais na Igroja Universal. No comeco
    dos anos 80, houve um episodio em Minas Gerais, de um pastor
    que mantinha um caso com seu evangelista. Isso fez com que o
    bispo Macedo transferisse para la o pastor Renato, para tentar
    conter os rumores; na igreja de Sao Goncalo, o pastor Paulinho,
    logo que acabava o culto, me pedia para fechar a igreja e remover
    os bancos para que ele, munido de malha aderente e sapatilhas,
    podesse exercitar seu lado Barishnikov, sob os refletores que
    iluminavam o pulpito; o pastor Pinheiro, de Santo Amaro da
    Purificacao, era constantemente advertido pelo pastor Goncalves
    para deixar de alisar o cabelo, usar base no rosto e pintar as lon-
    
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    gas unhas com esmalte incolor. Mesmo assim homossexualismo con-
    tinuava intoleravel... na teoria.
    
    Ao me despedir com lagrimas do povo da Babia recebi flores,
    beijos, abracos e desejos de boa sorte. Se fosse feita uma pesquisa
    com o povo da Igreja em Salvador eu seria certamente apontado
    como 0 pastor mais popular.
    
    Aquelas pessoas me acompanharam desde a adolescencia. Viram
    quando eu havia chegado ali, aos dezesseis anos, tao franzino que
    mal agentava o peso do microfone. Carinhosamente me apelida-
    ram de "Davizinho". Quando chegou a epoca em que tive que me
    alistar, fizeram correntes de oracao para que eu nao passasse, pois
    nao queriam que eu me ausentasse para servir. Houve uma grande
    festa na igreja quando foi dispensado.
    
    Meu casamento foi um acontecimento em que o povo lotou as
    ruas ao redor do local em que a cerim“nia foi realizada. Quando a
    minha filha nasceu o povo compareceu em massa. Alguns, como os
    reis magos, vieram de longe somente para ver o bebe e trazer um
    presente. Eu sentia remorso por nao jogar limpo com aquelas pcs-
    soas humildes, pobres na vasta maioria, que viam em nos a reencar-
    nacao dos apostolos de Cristo.
    
    Eu queria fugir dali para tentar fazer a coisa certa desta vez. Achava
    que em Sao Paulo as coisas seriam melhores. O lider de la, pastor
    Paulo Roberto, era uma excecao na Universal. Eu o admirava por ser
    um homem justo e aparentemente cristao. Se nao era um primor de
    lider, pelo menos nao nos induzia a saques e humilhacoes
    
    Graca tambem viErou com a noticia. Chegou ate mesmo a vir
    com a ideia de que, uma vez em Sao Paulo, entrariamos num semi-
    nario juntos para aproLundar nosso conhecimento da Biblia a fim de
    "melhor servirmos na obra do Senhor".
 
    





    
    Era como se enfim uma luz fosse acesa dissipando toda a escuri-
    dao em que eu estava. Sentia que mais uma chance me estava sendo
    dada. A chance de reconstruir minha vida, minha fe e viver em paz
    com minha familia, com minha consciencia e com mou Deus. Nao
    demoraria para que essa luz se apagasse me jogando num abismo
    muitO mais escuro do que aquele em que eu estava antes.
    
        





    Todo o conhecimento que eu tinha da ciclade de Sao Paulo vinha
    das tardes de domingo no ssr. Tambem ja tinha ouvido dos meus
    conterraneos cariocas que a dita "locomativa do Brasil" era uma cida-
    de cinza, sem sol, sem praia, terra de um povo frio e sem graca, tendo
    Tutu Quadros como sua mais completa traclucao.
    
    Quando no Nordeste eu havia conversado com diversas pcssoas que
    sonhavam em ir para aquela cidade trabalhar, mas "so o tempo de juntar
    um dinheirinho e voltar porque aquilo nao e lugar para se viver".
    
    Para muitos nordestinos com quem eu tive a oportunidade de
    conversar, Sao Paulo representava o brc/zilic~n drecim. A chance de modar
    o curso de suas vidas. Em grandes levas, tormadas principalmente por
    baianos, esses nordestinos chegavam a pauliceia boscando um logar
    ao sol, mas percebiam que nao eram bem-vindos ja na rodoviaria,
    ondc assistentes sociais os recebiam implorando para que retornassem
    ao sertao, de onde nao cleveriam ter saido.
    
    Os que insistiam em ficar enfrentavam, alem do frio e do desem-
    prego, o preconceito cle uma sociedacle elitizada que ainda se orgullla-
    va de ter em seus quadros quem ostentava titulos jorassicos como
    "playboy" e "condessa". Uma sociedarle que, querenclo entrar no Pri-
    meiro Mundo a tapa, criou a sua versao dos.rLinlie~lds: um grupo cle
    mestic,os do suburLio que alarcieava a separacao e supremacia dos,
    pasmem, brancos.
    
    Amei Sao Paulo desde o primeiro momento em que pisei o seu
    solo, desfazenclo a antipatia quc sentia pelo lugar antes mesmo de
    conhece-lo. Apesar cle o tao falado cinza do ceu e a frieza do povo
    serem mais do que uma verdacle, uma marca registrada da cidade,
    existia no ar, alem da poluicao, um certo romantismo. Uma nostalgia
    que me clespertava uma doce saudade de algo que nao vivi.
    
    Cidade de sontuosos predios de seculos passados. Cada um con-
    tanclo um peciaco dc historia. A Estacao da Luz, o Museu do Ipiranga,
    a CateUral da Se, o Palacio das Industrias, o Mosteiro de Sao Bento, o
    Patio do Colegio, o Mercado Municipal. O Copan, a tal favela com
    grife, e ate a Boca do Lixo, a Rue Saint Denis paulista.
    
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    E sem falar da convivencia democratica na cidade. Talvez a unica do
    mundo onde o brega e o chiqLle vivem em completa harmonia e ate
    dividem o mesmo espaco. Numa mesma calcada e possivel observar os
    visons sinteticos que caminham em clirecao ao Teatro Municipal se mis-
    turarem a classe media que vorazmente consome no Mappin.
    
    Chegando na ciclacle, fomos morar num apartamento da Igreja si-
    tuado no numero 171 cia rua 25 de Marco, no parque D. Peclro II. Em
    pouco tempo eu ja havia me incorporado a cidade praticando costu-
    mes tipicamente paulistanos, como correr no Ibirapuera, comer pizza
    no Bexiga e passar 0 domingo lenc30 jornal. Como eu havia pensado
    antes, minha sa~da da Bahia foi um sapro cle vida. Agora eu estava
    muito mais animado e com uma disposicao samente comparada aque-
    la dos meus primeiros passos na Igreja. Uma das razoes do meu animo
    era o fato de mais uma vez poder trabalhar com o pastor Paulo RoLer-
    to, que era tao parecido com Rodrigues quanto a agua do vinagre.
    
    EU fui mantic30 na igreja-sedc, que funcionava num gigantesco
    cinema na avenida Celso Garcia, no reduto italiano do Bras. Ali na
    sede, eu trabalhava nao so com o pastor Paulo, mas tambem com os
    pastores Francisco e Luiz Ecluardo. Ao ganhar novas responsabilida-
    des e ser tratado com o respeito de que eu me achava merecedor, voltei
    a fazer planos c aos poucos fui deixando as drogas.
    
    Desde que tinha assumido a lideranca c30 estado, pastor Paulo fazia
    questao cie c3irigir pessoalmente a rconiao cie estudos b~blicos para os
    obreiros nas noites de sabado. Aquela reuniao era a menina dos seus
    olhos. Toclos os obreiros da Grande Sao Paulo tinham presenca
    obrigatoria nesta reuniao que era, na verclade, um curso de formacao
    de novos pastorcs. Devido aos compromissos nas programacoes de ra-
    dio e televisao, pastor Paulo foi incapaz cie continuar a frente dessa
    reuniaO cle obreiros e me escolLeu como seu sucessor. Passou para as
    minhas maos a responsabiliciade de transformar na nova geracao de
    pastores aquelas centenas dc pcssoas que lotavam o tempo nas noites
    de sabado.
    
    Tambem passei a apresentar com um grupo de pastores os progra-
 
    





    mas nas radios Capital e Sao Paulo, que mais tarde passou a ser pro-
    priedade da Universal.
    
        





    Apcsar de a Igreja paulista nao ter o numero de fieis do Rio e da
    Babia, ela era de longe a mais organizada e requintada. Enquanto nos
    outros estados a Igreja conseguia seus seguidores nas camadas mais
    pobres da populacao, em Sao Paulo a maior parte de seus membros
    era portadora de diploma universitario. Juizes, advogados, engenhei-
    ros, medicos e diversos empresarios faziam parte do nosso corpo de
    obreiros.
    
    Na Bahia, por exemplo, o nosso maior proLlema estava em criar
    dependencias para montar uma creche, onde as dezenas de maes sol-
    teiras pudessem deixar sua prole enquanto participavam dos cultos. O
    nosso proLlema de espaco em Sao Paulo era um estacionamento onde
    os membros pudessem guardar seus carros com seguranca.
    
    Essa viabilidade econ“mica de Sao Paulo fez com que o bispo le-
    vasse para la as chaves do cofre e brindasse a cidade com o status de
    "sede mundial". No quadro de pastores foram introduzidas aulas de
    ingles, diccao, postura e etiqucta. Os lances de curandeirismo primi-
    tivo, que sao fortes no Nordeste, como dar ao povo oleo e sal para
    tomar, nunca existiram em Sao Paulo. O bispo sempre dizia que para
    cada peixe deve ser usada determinada isca.
    
    Na medida em que a Igreja crescia na capital e em grandes cidades
    do interior, como Campinas, Santos e Ribeirao Preto, nos comecamos
    a ganhar inimigos na imprensa. O maior deles era o degutado Afana-
    zio Jazadji. Durante seu programa na radio Capital ele nos chamava
    de ladroes. E a gente retribuia chamando-o de "Satanazio".
    
    Com esse crescimento, a Igreja andou a passos largos na capital,
    adquirindo imoveis em lugares de grande movimento popular e trans-
    formando-os em majestosos templos. O bispo seguia ao pe da letra a
    filosofia de Joaozinho Trinta, de que o povo gosta mesmo e de luxo.
    
    Na onda de compras, adquirimos um imenso cinoma no centro
    de Sao Miguel Paulista e as instalacoes de uma antiga agencia do
    Bradesco na roa Clelia, na Lapa - depois de uma reforma milionaria,
    ela podia competir, em termos de luxo, com a casa de show Olym-
    pia, no outro lado da rua.
    
    Compramos tambem um bordel e video-p“quer desativado em
    Santa Cecilia. Mesmo depois de ter virado uma casa de oracao, o lugar
    
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    manteve sua decoracao "cabare anos 30", que abusava de espelhos
    variados, paredes forradas de veludo vermelho, lustres de cristal e
    jardim de inverno. Pela soberba do ambiente, a impressao que se
    tinha era a de que se estava no Moulin Rooge de Paris e que, a
    qualquer momento durante o culto, as obreiras se alinhariam para
    dancar 0 c~n-ccin.
    
                         VI
    
    Nao faca do dinheiro uma arma, a vitima pode ser voce (nao deu
    para evitar o cliche). Dinheiro, o sangue da obra de Deus, segundo
    pastor Magno, havia se tornado no cancer que ia aos poucos comendo
    as visceras da Universal. Era como se tudo ali dentro fosse feito em
    funcao de se fazer mais e mais dinheiro.
    
    As reunioes de pastores, que nos anos anteriores continham leitu-
    ras de salmos, canticos espirituais e longas horas de oracao, assumiam
    agora as caracteristicas de reuniao do conselho administrativo de mega-
    empresa. Os assontos do dia eram compra e venda de imoveis ao redor
    do mundo, as cotacoes do ouro e do dolar ou os movimentos da bolsa
    de Sao Paulo e Londres. O unico Evangelho pregado nesses encontros
    era aquele segundo Lilian Wite Fibe.
    
    Ser ronbado por seus proprios pastores sempre foi o maior temor
    do bispo Edir Macedo. Naquela epoca estava havendo uma explosao
    de rouLos em todo 0 Brasil e havia quase a certeza de que ativos e
    ex-pastores estavam por tras desses assaltos. Na Babia, um ex-pastor
    comandou um assalto frustrado a sede da igreja no largo Dois Leoes.
    No Rio de Janeiro, houve o assalto que resultou na morte de um pas-
    tor que estava a caminho da tesouraria. Somente quem conhecia mui-
    to bem o esquema da Igreja Universal saberia exatamente o horario e
    a rota do pastor.
    
    Nem a mansao do bispo foi poupada - ela sofreu duas tentativas de
 
    





    assalto' apesar de seus segurancas e dos muitos caes de guarda.
    
    Alguns pastores nao tinham nem mesmo a pachorra de esperar
    terminar o culto para checar a sacola com o dinheiro obtido: ajoelha-
    dos diante do povo numa alusao a sua humilhacao diante de Deus,
    
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    ~l
    
    com o microfone numa mao faziam as suas orag-oes decoradas. Com a
    outra mao iam abrindo envelopes para ver quanto haviam faturado
    naquele dia.
    
    Nesse ambiente em que todos eram culpados, uma das taticas do
    bispo para ser menos roubado foi colocar gente sua nos postos-chaves
    da Igreja. Mesmo assim o dinheiro continuou escoando.
    
    Como em qualquer outra grande organizacao, o cabide de emprego
    e o nepotismo faziam parte do jogo interno da Universal. Por esta razao
    tinhamos de conviver com aquela regrinha que parecia ter sido extraida
    do poema: fulano, que era casado com a irma de sicrano, que era tio de
    beltrano, que amava a f Iha do bispo, que nao amava ninguem.
    
    Exemplo classico deste nepotismo era o pastor Ronaldo Didini,
    que degois apresentaria o programa 25 gHorc~, na TV Record. O sujei-
    to tinha por unica qualidade ser cunhado do pastor Manuel Francisco
    naquela egoca homem forte da Universal nos Estados Unidos. Didini
    tinha sido oficial do Exc'rcito, atastado do servico porque passou a
    desenvolver "fortes proElemas emocionais". Nao sei como ele tratava
    seus subalternos nos quarteis. Na igreja, Didini gritava e esUravejava
    com os obrciros como se estivesse comandando solUados ern um trei-
    namento de sobrevivencia na selva. Freud explica.
    
    Nisso a Igreja paulista se assemelhava as suas irmas nos outros
    estados. Na prepotencia daqueles que, se nao se achavam melhores,
    pelo menos se achavam mais iguais que os outros.
    
    Em Sao Paulo comecamos a participar de reunioes que trouxeram
    a mesa de discussao um assunto que ate entao era um taLu: a vida
    sexual do pastor. Quando aumentou sensivelmente o numero de es-
    candalos sexuais, a lideranca se sentiu forcada a fazer alguma coisa
    para frear aquela onda. Num espaco de apenas alguns meses, dois gran-
    des escandalos abalaram as estruturas da Igreja Universal em Sao Pau-
    lo. O primeiro aconteceu quando o pastor Francisco, dono do rosto
    angelical que apresentava o programa na ~v Bandeirantes, foi visto
    saindo de um motel com uma de suas ovelhas. Para quem nao sabe, o
    disse-me-disse dentro de igreja e como fogo morro acima. Em pCJUCO
    tempo todos os membros comentavam o afiair de Francisco. Mas o
    escandalo maior veio quando o pastor Ant“nio, meu auxiliar no bair-
    
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    ro A. E. de Carvalho, na Zona Leste da caE~ital, abandonou a mulher e
    o filho de tres meses e fugiu com uma menina menor de idade que
    freqentava a igreja.
    
    O bispo Macedo e o pastor Paulo comecaram entao a promover
    conferencias sobre sexo em reunioes de casais realizadas em hoteis-
    fazendas espalhados pelo interior do estado.
    
    Os assontos explorados iam desde sexo oral ate sadomasoquismo.
    Nada que Marta Suplicy nao comentasse na televisao. Mas, vindo do
    bispo, aqueles comentarios causavam um certo constrangimento na
    audiencia. O efeito seria o mesmo se o papa reunisse sua bancada de
    cardeais e explicasse com detalhados pormenores como bater uma
    punheta com arte.
    
    Nestas reunioes passamos a conhecer a faceta latin laver do bispo
    que ate entao era exclusividade de sua mulher. Ele se mostrava como o
    grande homem capaz de satisfaze-la. "Plena e completamente", fazia
    questao de doixar bem claro. Na piscina com a mulLer, Sua Excelen-
    cia Reverendissima nao perdia a oportunidade de dar uma demons-
    tracao rapidinlla do dragao sexual que era. Afirmava que, se todos
    seguissem seus conselhos, nao haveria a necessidade de se procurar
    sexo fora do casamento. "Quem come bem em casa nao tem fome na
    rua", profetizava.
    
    Na medida em que estes encontros aconteciam, os casais iam se
    descontraindo e participando mais confortavelmente do debate.
    MulLer de pastor, que no principio corava somente de ouvir a palavra
    "cueca", ja levantava a mao, toda assanhadinha, para perguntar se ba-
    nho-de-gato era pecado.
    
    O auge dessas reunioes foi quando chegamos ao consenso de que o
    casal tinha liberdadc para fazer o tipo de sexo que bem quisesse. Pon-
 
    





    to para a democracia. So nao era E>ermitido usar chicotes ou algemas.
    Mesmo assim, ponto para a democracia. Tambem ficou permitido vi-
    Sita a moteis e assistir filminhos de sacanagem durante a "trepada".
    Era 0 liberou geral. A partir dali, sempre que um pastor encontrava 0
    outro, ja nao mais trocavam conhecimentos biblicos. Em vez disso,
    comentavam os ultimos lancamentos do cineasta David Cardoso e da
    porno-star Cicciolina.
    
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    Enquanto a Igreja Universal aderia aos novos tempos, no Vaticano
    ainda discutiam a aUsolvicao de Galileu Galilei.
    
    Ha muito eu ja havia deixado de ver a Universal como um logar
    espiritual. Os unicos que ainda viviam esta ilusao eram os que se li-
    mitavam aos bancos da igreja. Qualquer um que fosse um pouco alem
    dlsso descobria a triste verdade do Reino. Um operador de audio que
    era membro da Igreja e trabalhava no estudio da radio Sao Paulo co-
    mentou comigo, durante uma sessao em que gravava o meu programa
    semanal, que ele estava pensando em pedir a sua dispensa, pois nao
    suportava mais ouvir as conversas dos pastores sobre dinheiro quando
    estavam em off e a mudanca de comportamento assumindo uma pos-
    tura beneditina quando eram levados ao ar. Esse mesmo rapaz desistiu
    de vez da Igreja quando foi fisicamente agredido pelo pastor Alexan-
    dre, aquele que se orgulhava da fama de "nervo exposto" da Universal
    
    Na medida em que fui amaJurecendo passei a querer viver uma
    vida normal. Eu queria ser uma pessoa comum. Queria ter um traba-
    lho decente e voltar a estudar. Comecei a fazer planos de freqentar
    uma universidade e preparar um futuro para minha filha. Nao queria
    que ela crescesse naquele ambiente da Igroja.
    
    As vezes conversava com minha mulher sobre meu desejo de dei-
    xar a Igreja e reconstruir a vida la fora, mas ela era contra e eu nao Ihe
    tlrava a razao. Como sobreviveria numa cidade como Sao Paulo al-
    guem como eu? Chefe de familia aos 23 anos, com o segundo grau
    mcompleto e absolotamente nenhuma experiencia profissional. Que
    emprego me pagaria o salario que eu tinha na Universal? Eu tinha
    medo de sair e por isso ficava. Mas a unica coisa que me prendia a
    Igreja era a covardia de tentar ir a luta. E a falta de amor-proprio
    
    Quando o bispo fechou a compra da Record, por 45 milhoes de
    dolares, nos tivemos de pagar o pato. Apesar de que nao havia neces-
    sidade disso, nossos salarios foram cortados por tres meses com a des-
    culpa de que a Igreja precisava economizar dinheiro para o investi-
    mento. Ninguem se atreveu a protestar.
    
    Poucos anos mais tarde, o pastor Carlos Magno, lider da Universal
    e braco direito de Macedo, dirigente de estados como Ceara e Sao
    Paulo, irado com o bispo por nao ter recebido seu apoio na rentativa
    
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                          !
    
                          i
    
    de se eleger deputado, fez a denuncia de que a Record tinha sido com-
    prada com a ajuda de traficantes que queriam lavar no Brasil dinheiro
    de seu comercio de drogas. O pastor Carlos chegou a dar detalhes de
    como atravessaram as fronteiras do pais com o jatinho de Macedo
    abarrotado de dolares. Nao houve cP~ e nem mesmo investigacao por
    parte da Policia Federal para averiguar as origens da denuncia. Por
    muito menos, nos Estados Unidos, o televangelista Jim Baker amar-
    gou varios anos na prisao.
    
    Aproveitei a euforia da compra da Rede Record para tentar ganhar
    minha liberdade. Esperava que com essas novas empresas deLaixo da
    supervisao da Igreja eu poderia conseguir um emprego e deixar de
    atuar como pastor. Sabia que ainda assim estaria ligado a Igreja, mas
    me consolava a ideia de que ao menos estaria mais livre. Ao levar a
    minha proposta ao pastor Paulo tentei explicar que estava estressado e
    precisava dar um tempo para p“r meus sentimentos em ordem. Na
    verdade, o que eu queria dizer era que estava cansado daquele jogui-
    nho de mentiras, que, se antes me deprimia, agora me enojava.
    
    Procurando ganhar sua simpatia eu disse que assim que me sentis-
    se em condicoes voltaria a exercer a "tao amada funcao de pastor".
    Nao colou. A resposta do pastor Paulo foi sem rodeios: eles precisa-
    vam de mim como pastor. Para as outras funcoes existia gente muito
    mais qualificada. Quando tentei contra-argumentar, ele me disse que,
    se eu nao quisesse mais ser pastor da Igreja, eu tinha todo o direito de
    seguir meu caminho. Falava como se "seguir meu caminho" fosse a
    coisa mais facil do mundo.
    
    Tentei negociar meus oito anos de trabalho para a Igroja. Oito
    anos sem direito a ferias, decimo terceiro salario, assistencia medica e
    tudo aquilo que a Constituicao assegura ao trabalhador.
 
    





    
    A resposta dele as minhas reivindicacoes foi alem da minha ima-
    ginacao: tudo o que eles me dariam seria um mes do meu salario e
    trinta dias para entregar o apartamento da Igreja que eu ocupava.
    Caia assim pastor Pa~llo, meu ultimo heroi ali dentro. Se aquelas
    palavras tivessem vindo de Rodrigues nao teriam me ferido tanto.
    
    Ali em frente ao pastor Paulo, me deixei cair numa das conforta-
    veis cadeiras do seu gabinete ministerial, todo equipado com compu-
    
                          79
                           
        





    tadores, aparelhos cle fax e um compacto superestudio cle onde ele
    transmitia ao vivo o seu programa na radio Sao Paulo diretamente da
    comodidade de seu escritorio. Aincla aturdido pelo que acabara de
    ouvir, viajei no tempo por alguns segundos ate aquela manha quando
    com apenas quinze anos de idarle, tentava explicar a minha mae por
    que abandonava o colegio e saia de casa para seguir a Igreja Universal.
    A Imagem de suas lagrimas corria nitida em minha mente. "Filho
    quem sou eu para brigar com Deus pelo teu coracao?"
    
    Pastor Paulo disse que gostava cle mim porque eu era um dos raros
    pastores que nao tinha conhecidamente aJulterado ou ronbado. Ele
    nao queria que eu saisse e, por isso, me deu um tempo para que eu
    cstudasse m~nha decisao. Para isto, poquei minha familia e fui para
    Sao Goncalo, no Rio, esperanc30 que, da poeira vermelha das rnas cle
    barro da Boa Vista, pudesse encontrar uma direcao para minha vida.
    
    Varios anos tinham se passado desde a ultima vez quc tinlla visita-
    do minha familia. Engracado como o tempo muda nossa opiniao. A
    tao ocliada Boa Vista era agota um lugar que me trazia maravilhosas
    recordacoes cle minha breve intancia. G'm excecao de uma moenda clc
    cana que meu pai havia montado no quintal, tudo continuava do jeito
    que eu deixei.
    
    Com a chegada da agua encanada, o progresso comecava a dar os
    primeiros passos naquela regiao. Estavam toclos ali: seu Lilinho, dona
    Dilce, dona Guiomar, dona Marlene, clona Dina, Raime, Armiro(que
    eu acredito ja ter nascido beSado), Maneco e Paulo Maluco. Havia
    tambem muitas criancas. A nova gerac,ao de moradores daquele lugclr
    Essas criancas cram os filllos dos meus amigos cle intancia e legitimos
    herdeiros da pocira vermelha.
    
    Todos estavam ali. Menos minha mae.
    
    1
    
                         VII
    
    Atravessei o portao do cemiterio Sao Miguel e, enquanto cami-
    nhava, um misto de saudadc e remorso machucou meu coracao. Por
    uma serie de razoes nunca imaginei que um dia faria aquela visita. Ja
    fazia mais de dois anos que mamae havia morrido e nem mesmo na-
    
    quela ocasiao eu tinha ido ali. Mas pela primeira vez eu sentia uma
    imensa falta dela. Como eu queria poder correr para ela. Aos prantos.
    Do mesmo jeito que fazia quando era crianca. Naquele tempo em que
    seus bracos eram o meu bom e quente refugio. Para mim, o lugar
    mais seguro do mundo.
    
    As lembrancas de minha mae invadiram minha mente e eram tao
    reais que podia claramente ouvi-las. Minha mae era tudo o que eu
    precisava naquele momento de minha vida. Pela sua pouquissima ex-
    periencia, tudo o que me diria seria: "Tenha fe em Deus que tudo
    terminara bem". Essas simples palavras vindo dela seriam suficientes
    para me fortalecer. Todo o fardo que carregava seria muito mais leve
    se ela estivesse comigo.
    
    Enquanto conferia os numeros dos tumulos com aqueles que mi-
    nha irma me havia clado, eu ia lendo as mensagens gravadas no mar-
    more e deixadas ali pelas familias e amigos daqueles mortos: "Que ao
    soar da trombeta do arcanjo anunciando o arrobatamento dos santos
    eu possa me levantar daqui para encontrar nas novens com meu re-
    dentor"; "Aqui jaz Maria, uma grande mulher"; "Te amava, te amo e
    sempre te amarei". Por alguns momentos fiquei imaginando se, quando
    vivas, aquelas pcssoas sabiam o quanto eram amadas. e impressio-
    nante a vergonha que temos de dizcr a alguem que 0 amamos.
    
    Vendo a minha dificuldade em encontrar 0 tomulo que procurava,
    um velhinho simpatico se ofereceLI para me ajudar. Pelo jeito como
    conhecia o local, devia trabalhat ali. Finalmente encontramos. Minha
    mae havia sido segultada no fundo do cemiterio, quase perto do cm-
    zeiro. Nao estava em tumulo, mas em algo semelhante a um arquivo
    de concreto. Identifiquei-a pelo numero escrito a lapis. Algumas ga-
    vetas nao continllam nem mesmo a indentificacao a lapis. Nao sei
    bem descrever c' que senti naquele momento. Era como se alguma
    coisa dentro de mim se partisse ao meio. Como se todo o meu ser
    entrasSe em ebulicao. Sem tentar segurar deixei extravasar toda a mi-
    nha saudade e dor. Lagrimas grossas correram dos meus olhos a mo-
    lhar o chao seco do cemiterio. Minhas pernas enfraquecidas nao sus-
 
    





    tentaram mais meu corpo e me doixei ajoelhar em meio aos tocos de
    velas e flores secas deixadas ali por algtlem que nao conlleceu minha
    
        





    mae, numa dessas bonitas homenagens an“nimas. Ao solUado des-
    conhecido.
    
    Susurrei algumas palavras. Nao me lembro se foi uma oracao ou
    palavras de gratidao. Ou de amor. Talvez um pedido de perdao ou
    alguma tentativa de explicacao. Nao importa. De qualquer forma,
    ela nao me ouvia. E isso era o mais doloroso. Saber que, sem que ela
    tomasse conhecimento, minhas lagrimas e lamentacoes, declaracoes
    de amor e gratidao se perdiam num vazio tao grande e tao profundo
    quanto aquele existente dentro de mim.
    
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