Nos Bastidores do Reino

A Vida Secreta na Igreja Universal do Reino de Deus


                    
CAPITULO TRES
                        SAMPA
    
                          I
    
    A primeira coisa que senti quando sonhe que o pastor Carlos
    Alberto Rodrigues seria o nosso l~der na Bahia foi uma explicavel
    sensacao de pavor. Afinal de contas, todos nos ja tinhamos ouvido
    falar da sua fama de clurao no trato com pastores c obreiros.
    
    O pastor Rodrigues era a figura mais popular cla Igreja Universal
    depois do Bispo, a quem ele se clirigia tratanclo simplesmente por
    "Edir". Ele era o unico que fugia da linha vaquinha de presepio segui-
    da por todos os pastores. O unico que ousava Icvantar a voz quando
    discordava de algtlma decisao tomarla pelo bispo. A amizade entre
    eles era mais velha que a propria Igreja Universal. Ela vinha dos tem-
    pos em que os dois faziam parte das Igrejas Casa da Bencao e Nova
    Vida. Naquela epoca, Carlos Alberto Rodrigues era um obreiro ado-
    lescente e o recem-convertido Edir Macedo de Bezerra apenas um au-
    xiliar de escritorio cla Loterj. Sem ter ainda o sonho messianico e na-
    pole“nico de que no futuro bibiiotecas inteiras e evangelhos seriam
    escritos sobrc a sua pessoa.
    
    Sem o apoio dos lideres de suas igrejas aos seus metodos revolu-
    cionarios de atrair fieis, como distribuicao de sal milagroso, o entao
    evangelista Macedo se juntou a um grupo de amigos evangelicos e
    fundou a sua propria Igreja. Alem de Rodrigues, fazia parte desse
    grupo o missionario R. R. Soares (conhado cle Macedo, que mais tarde
    rompeu com ele, fundanclo a Igreja da Graca), o reverendo De Paula
    (que tambem brigou com Macedo e saiu), o pastor Joacir (tambem
    saiu), o pastor Benedito (saiu), e o contador Naylton Nery (esse, quem
    diria, acabou '~o Iraja). Hoje em dia esse pastores devem estar tao
    arrependidos quanto aquele quinto Beatle.
    
    Com o crescimento imprevisivel do bolo, e com cada um querendo
    a melhor fatia, comecou uma luta interna pelo poder que terminou
    
        





    com a dissolucao do grupo, o que deu a Macedo a lideranca total
    daquilo que viria a ser um milionario aglomerado de empresas que,
    alem da fe, atuaria em ramos tao diversos entre si quanto redes de
    comunicacao e madeireiras, construtora e banco. Alem da Universal
    Producoes, uma holding que administra uma grafica, uma editora,
    um jornal e uma gravadora.
    
    Rodrigues era o unico remanescente daquele grupo de 1977 que
    continuava com o bispo. Se bem que muita gente achava que essa sua
    fidelidade ao rei era semelhante aquela de primeiro-ministro de dese-
    nho animado. Talvez porque ele nunca se preocupasse em esconder
    sua gana pelo trono.
    
    Com um visual que lembrava John Lenuon, um pigarro eterno na
    garganta e sempre procurando ajeitar os oculos que teimavam em es-
    corregar pelo nariz, era conhecido como o "pastor das multidoes". Seu
    programa de radio, de apelo populista, assemelhava-se mais ao Show do
    Pa~lo Lopcs do que a uma programacao evangelica com o proposito de
    pregar a Biblia. Seu programa era sintonizado principalmente pelo ou-
    vinte tipico de AM: "As senhoras donas de casa e as minhas amigas
    empregadas domesticas". O seu Bom dia, vida era lider no horario.
    
    Em um espaco de tres horas ele comentava as novelas da Globo,
    dava o horoscopo do dia, respondia cartinhas assinadas por pseud“ni-
    mos como "coracao abandonado de Vila Valqueire" ou "desesperada
    de Guadalupe" e criticava a prefeitura pelo boraco na rua tal. Mas o
    ponto alto do programa era o momento da distribuicao de quilos de
    carne e feijao. A sua igreja no bairro carioca de Sao Cristovao era um
    verdadeiro sucesso.
    
    Diferente de outros estados como Sergipe, Rio Grande do Sul ou
    Goias, onde nos tinhamos um numero pequeno de templos e seguido-
    res, a Bahia era um porto seguro para a Universal. Houve ali um tem-
    po em que toda i~reja que se plantava dava Mas o pastor Goncalves,
    como todo vice que se preza, assumiu o poder e fez uma serie de trapa-
    lhadas durante a sua gestao, o que veio prejudicar a Igroja em todo o
    estado.
    
    Logo que recebeu a lideranca do estado das maos do experiente
    pastor Paulo, Goncalves comecou a lidar com problemas graves, como
    
    prisoes de pastores por envolvimento com drogas (foi o caso do pas-
    tor Paulo Cesar), aJulterios e rebelioes de pastores que, em massa,
    abandonavam a Universal para abrir seus proprios templos. Afinal de
    contas, templo e dinheiro.
    
    Havia tambem aqueles cajo nivel de vida era bem superior ao que
    seus salarios poderiam proporcionar. Estava claro como azeite santo
    que desviavam dinheiro da Igreja para as suas contas pessoais.
    
    O bispo, entao, decidiu enviar Rodrigues, numa tentativa de res-
    gatar a Universal baiana da desmoralizao e evitar a perda dos poncos
    fieis que teimavam em continuar na Igreja Goncalves, por sua vez,
    foi transferido para a humilhante posicao de pastor auxiliar da matriz,
    na Abolicao. Mas, vinganca e um prato que se come frio. Anos mais
    tarde, ele deu a volta por cima e se tornou o lider nacional, enquanto
    o bispo se transferia com a familia para Nova York, na ilusao de que os
    americanos comprariam o seu produto .
    
                         II
    
    As primeiras reunioes de pastores que Rodrigues realizou foram
    basicamente uma enxurrada de ameacas e baixarias. A mensagem foi
    curta e grossa: o pastor que nao atingisse a meta de oferta que ele
    havia estipulado levaria um chote no traseiro (prefiro usar esta pala-
    vra). Sabendo da nossa origem humilde, ele prometeu fazer cada um
    de nos voltar a antiga vida dura de peUreiros, garis e padeiros caso nao
    levantassemos o dinheiro que ele queria. Depois que mordia, assopra-
    va. Chamava na frente uns matutoes, pastores de cidadexinhas como
    Xique-Xique e Alagoinhas, e dava ao sujeito um vale para a extracao
    do dente podre ou presenteava o infeliz com um terno de tergal lilas.
    Fico imaginando se e isso o que o setor empresarial quer dizer quando
    fala de "premio de incentivo".
    
    Rodrigues tinha de positivo o fato de nao ostentar a tradicional mas-
    cara franciscana com a qual os lideres freqentemente exercitavam sua
    demagogia. Era evidente que a razao maior de sua transferencia para
    Salvador fora a necessidade que a Igreja tinha de fazer mais dinheiro
 
    





    naquele ano de 1985. Alem de ter ainda as ultimas parcelas da radio
    
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    Bahia para quitar, o bispo estava comprando quase todos os imoveis em
    que a Igreja operava, incluindo os que ficavam em areas nobres como a
    Barra, em Salvador, Copacabana e Ipanoma, no Rio e Vila Mariana e
    Santo Amaro, em Sao Paulo. Alem disso, ele ja havia iniciado negocia-
    coes para a compra de uma "emissora de ~v paraJesus".
    
    Como a Bahia era o segundo maior estado gerador de ofertas e
    Rodrigues um expert em lidar com o povo, o casamento dos dois foi
    uma feliz c rentavel ideia. Na sua gestao, o dizimo, secularmente 10%,
    passou para 30%. Ele criou tambem o "Pacto da Comunidade", um
    carne de dozc prestacoes que as pessoas pagavam mensalmente. Muito
    parecido com o Bau da Felicidade, com a desvantagem de que, caso os
    milagres nao acontecessem, o fiel nao teria direito a eletrodomesticos
    nas lojas 'famakavi.
    
    Sob a nova direcao, a Igreja Universal do Reino de Deus da Bahia
    voltou a ser o patio dos milagres da epoca de Paulo RoLerto. Com o
    programa de raclio mais ouvido de Salvador entre oito e onze horas da
    manha, Rodrigues arreLanhava diariamente centenas de pessoas para
    os cultos que realizavamos.
    
    Na tentativa de se fazer passar por um "apresentador polemico",
    ele batia boca, ao vivo, com os seguidores de mae Menininha do Gan-
    tois e do cardeal dom Avelar Brandao Vilela.
    
    O ano de 1982 marcou tambem o per~odo em que a Igreja come-
    cou a se politizar. Alegando querer salvar o Rio de Janeiro do "comu-
    nista" Leonel Brizola e das "mazelas do pedetismo", o bispo apoiou
    abertamentc a candidatura da professora Sandra Cavalcanti para o
    governo do estado. Isso soou como uma especie de, digamos, quebra
    de promessa de campanha, pois a pregacao de Macedo ate o imcio
    dos anos 80 era a de que a igreja nunca se envolvesse diretamente com
    politica, que para ele era "uma coisa do diabo".
    
    Mudou o diabo ou modamos nos?
    
    Foi, porom, em 1986 que vendemos de vez a alma para Sata. Na-
    quele ano, comecamos a apoiar candidatos em varios estados do pa~s e,
    no Rio, pensava-se abertamente na possibilidade de lancar a propria
    mulLer do bispo Macedo, ou um de seus irmaos, Eraldo ou Edna,
    como candidatos da Igreja. Ja nao queriam apenas intermediarios
    
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    No final, decidiram que o bispo Roberto Augusto seria candidato a
    deputado federal e Eraldo Macedo a deputado estaJual. Poucos anos
    depois, ja eleito, o bispo-degutado brigaria com Edir Macedo e aban-
    donaria a Igreja Universal.
    
    Rodrigues, vendo a sua intencao de ser deputado federal abortada
    pelo bispo, teve de se conformar em ser apenas o coordenador politico
    da Igreja. E nesta funcao ele se saiu muito bem. Alem de eleger um
    bom numero de vereadores e deputados, elegeu tambem o prefeito
    Mario Kertz, que, sendo desafeto de Ant“nio Carlos Magalhaes,
    jamais teria chegado a prefeitura de Salvador sem o apoio da Igreja.
    O prestigio poli'tico de Rodrigues estava tao alto que 0 maior proble-
    ma de Enir, sua mulLer e secretaria particular, era conseguir espaco na
    agenda para o grande numero de parlamentares em bosca de andien-
    cia. Ele chegou ao requinte de ser convidado para a posse do governa-
    dor Waldir Pires, no Palacio de Ondina.
    
    O que o governador eleito nao sabia era que Rodrigues, em troca
    de verbas para sua recem-criada "fundacao", jogava nos dois times,
    trabalhando tambem, por baixo dos panos, para a eleicao de seu
    adversario, Josaphat Marinho, candidato do PFL, partido dos neo-
    coronessauros do Nordeste. Politica deve ser coisa do diabo!
    
    Enquanto se tornava uma figura importante na politica baiana e
    era endeusado pelo povo, para os seus E>astores Rodrigues era cada
    vez mais um constante pcsadelo. Muitos nao concordavam com seus
    metodos, mas, por amor a seus empregos, nao tinham coragem de
    se manifestar. Para mim, nao existia dia pior do que as segundas-
 
    





    feiras, dia das reunioes de pastores. Durante esses encontros, nos
    eramos psicologicamente estuprados pelo cinismo e pelo sarcasmo do
    pastor Rodrigues.
    
    Toda semana ele mandava pastores "imE>rodutivos" embora. Mas,
    para nao passar aquela imagem de a-gente-so-pensa-em-dinheiro, ele
    lancou mao de um plano maquiavelico: durante as reunioes, lia cartas
    anonimas de veracidade duvidosa, em que alguem relatava a ma con-
    duta daquele pastor que Rodrigues ja pretendia mandar embora. De-
    pois de lidas as cartas, era feita, na base do "levante a mao", uma
    eleicao que decidia a sorte do pobre coitado.
    
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    Tinhamos entao nas maos, literalmente, um dilema: se levantasse-
    mos a mao pedindo a degola do pastor, estariamos, baseados em de-
    nuncias de uma carta sem assinatura, traindo um amigo e irmao de
    muitos anos, com uma familia para sustentar e que, como todos nos
    ali, um dla teve a boa inreor~r~,l~ r~ : - -
    em tempo integral.
    
       ~.
    
    __ s~ ~. ..~.~`,l~lar a Luno para servir a Igreja
    
    Por outro lado, se nao o fizessemos estariamos comprando briga
    com Rodrigues, que ja havia decidido pela exclusao daquele pastor
    mas cruelmente transferia para nossas maos a tareLa de consuma-la
    Covardemente, levantamos a mao pela saida. Cada pcssoa tem uma
    razao especial para odiar as segundas-feiras. A minha era a agonia da
    expectativa de saber quem seria o sacrificado do dia.
    
    Existia entre mim e Rodrigues uma relacao de amor e odio que aos
    poncos foi consumindo minha fe e credibilidade na Igreja. Eu era um
    dos mals populares entre os pastores da Bahia, e o segredo do meu
    sucesso era a formula que havia copiado do proprio Rodrigues, que eu
    ia conhecla do Rio de Janeiro. Eu o imitava na maneira de dirigir os
    cultos, apresentar os programas de radio e no falar aos fieis. Usando
    sempre a linguagem do "ze povinho" (esse e o apelido que o bispo deu
    a camada pobre que freqentava a Igreja).
    
    O pastor Rodrigues nunca aceitou competicao e, logo ao chegar a
    Bahla, comecou uma doentia perseguicao aos pastores que eram tao
    populares quanto ele - ou mais - no estado. Quando nao encontrava
    motlvos para manda-los embora, acabava transferindo-os para outros
    estados. Ao mesmo tempo, ele se cercou de gente menos capaz, como
    o pastor Torres, a missionaria Conceicao e o pastorJoao de Deus. Esse
    ultimo morreu num acidente rle rarr~ ,1,.:..~- ~- ' ''
    
    rando sua falta.
    
    .~.... ~ ~arro, aelxando varias mulLeres cho-
    
    Aos poucos comecei a perder o meu espaco. Os programas de radio
    que apresentava pela manha e nas tardes de domingos foram dados
    para um dos asseclas de Rodrigues. Tambem fui transferido da Liber-
    dade para o suburLio de Periperi, onde foi preso e foi espancado, na
    delegacia, por perseguicao religiosa da parte da delegada local. So-
    mente fui liberado depois que o advogado da Igreja, que era delegado
    federal, correu em meu favor.
    
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    Mas o pior veio mesmo quando foi decidido que eu seria transfe-
    rido para Jequie, no interior do estado. Nos tinhamos um bebe de
    seis meses, e minha mulher nao queria se separar da mae. Minha sogra
    me pediu para nao ir e prometeu usar sua influencia para me conse-
    guir um emprego caso a Igreja me mandasse embora. Eu nao queria
    sair da igreja. E os meus ideais? E os meus propositos de pregar a
    palavra de Deus? Aquela altura, as minhas narinas ja haviam perce-
    bido algo de podre no Reino - mas acima de Rodrigues, acima do
    bispo e da propria Igreja Universal estava o Deus em quem eu ainda
    acreditava piamente.
    
    "Aquele que lancar a mao no arado e olhar para tras nao e digno de
    Mim." As palavras implacaveis do Evangelho ecoavam em minha men-
    te. Eu nao queria olhar para tras como a mulher de Lo. Nao queria
    virar uma estatua de sal.
    
    E alem do mais, como seria minha vida la fora sem profissao defi-
    nida e com uma familia para sustentar? O meu mundo cabia nos limi-
    tes da Igreja e para mim era como se nao existisse vida fora dela.
    Como aquele personagem de Peter Sellers, a televisao era meu unico
    elo com o mundo exterior. Vivia sem a menor nocao da realidade.
    Estive ausente quando as ruas viraram um mar humano clamando por
    eleicoes diretas e mesmo fatos como a morte de Tancredo Neves e o
    Plano Crazado me passaram despercebidos. Como comecar de novo
    num mundo que continuou caminhando quando eu parei?
    
    Fui para Jequie.
    
    Na noite em que estavamos fazendo a mudanca, a minha sogra
 
    





    morreu de parada cardiaca. Graca era uma pessoa completamente de-
    pendente. Primeiro da mae, depois de mim. Sem nunca ter tomado
    uma decisao propria na vida, ela saiu das maos de um pai autoritario
    para as minhas, um marido que nao sabia cumprir o paE>el de amigo,
    companheiro e amante. A mae eta tudo o que tinha, e ela a perdera.
    Nao me acusou, mas nos dois sabiamos que sua mae havia morrido
    porque eu resolvi acatar a ordem de ir para Jequie.
    
    Era como se aquele fosse 0 nosso annus terri~oilis. As desgracas co-
    mecaram a se suceder umas as outras. Tres noites apos chegarmos aquela
    cidade, com nossas mudanca ainda na caixa, acordamos durante a
    
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    ~ -
    :
    
    madrogada com agua invadindo o porao da igreja onde hav~amos sido
    temporariamente instalados. Imaginei que fosse uma tempcstade
    e que as precarias condicoes cia igreja nao impediam que a agua
    entrasse. Mas vendo que o volume da agua crescia assustadoramente
    peguei Graca e Gabriela e tentei fugir dali. Ao abrir a porta, a agua
    entrou com tanta forca que nos emputrou de volta ao porao. Aper-
    tando Gabriela contra meu peito, eu pedia a Deus que nao nos deixas-
    se morrer ali.
    
    Finalmente conseguimos alcancar a rua, que estava completamen-
    te alagada e cllela de gente correndo em c3esespero. Passaram-se al-
    guns minutos ate que percebessemos que nao havia cllovido. Era uma
    dessas madrugaclas tediosas em que atc as estrelas bocejam.
    
    A enchente tinha sido provocada pela ruptura em uma clas represas
    cla cidacle. Caminhanclo entre pessoas que choravam o desaparecimen-
    to de parentes nas aguas, fomos, molhados e tromulos, procurar un
    lugar onde pudessemos sentar e nos recuperar do susto.
    
    Com as estrelas clanclo lugar aos primeiros raios de sol, sentamos
    numa escadaria bem em frente a igreja e ali no alto ficamos em silen-
    cio por algum tempo olhando o porao onde estavamos clorminclo com-
    pletamente tomaclo pela agua. Tudo o que tinl1amos estava ali clentro.
    D~nhe~ro, roupas e moveis. Mas naquele momento, do topo daquelas
    escadas, tudo o que pensavamos era o que teria acontecido se Gabriela
    nao tivesse nos acordado para mamar.
    
                         III
    
    Aquele ano fechou com a morte de minha mae. Quando eu soube
    que ela estava com cancer, procurei nao dar muita importancia ao
    fato. Na verdacle eu nao acreditava que minha mae morreria. Eu
    achava que Deus tinha uma clivida comigo. Afinal de contas etl tra-
    balllava para Elc e o mmimo que Ele podia fazcr era curar minlla
    mae daquela doenca. Ela tambem pensava assim, pois de tanto eu
    insistir minha mae era agora t~m membro da Igreja Universal. Po-
    rem, o fato de tentar ignorar a doenca de minha mae nao impediu
    que ela viesse a falecer.
    
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    l
    
    Quando minha mae morreu, o pastor de sua igreja nao se deu con-
    ta disso. Cinco meses depois, minha irma recebeu uma carta endere-
    cada a mamae, com a seguinte mensagem:
    
    Prezada Ir~na,
    
    Ultin~amente termos sentido a falta de sZ'a preriosa presen~-a nos cultos de
    lo~/vares ao Divino E.`l~i~ito Santo. Leml~re-se: "resisti ao clial~o e ele J'~gira cle
    vor". Erpe10 ver-te na proxima Ceia do Senhor.
    
    Paz reja convosco.
    
    Seu escrcivo em Cristo,
    
    Pastor Ricarclo Pellegrini.
    
    PS. () clizimo da i~a e.rta c~tra.rado e,/~ cinco ~neser.
    
    Ha muito tempo eu vinha querendo visitar minha mae, mas Ro-
    drigues dizia que minha igreja em Jequie nao estava dando lucro su-
    ficiente para me premiar com um "passeio" ao Rio de Janeiro.
    
    Ponco antes de receber a noticia clo falecimento de minha mae, eu
    havia sido transferido de volta para Salvador e fui colocado a frente da
    igreja na praca da Se, marco historico da Universal, por ter sido a
    primeira igreja a ftlncionar naquele estado.
    
    Na egoca de minha volta para a capital eu estava num terrivel
    estaclo de depressao. Nao comia, nao dormia e passava as madrogadas
    chorando. Cada pessoa que vinha a mim contando problemas e pedin-
    do conselhos contribu~a para o aumento daqelela depressao.
    
 
    





    Nao existia na Universal um unico grupo de suporte aos pastores.
    Os lideres nunca chamavam os pastores para conversar, para saber o
    que estava se passando em suas vidas, para conhece-los melllor. Com
    excecao daqueles que faziam parte do seu gruginho de fins de semana
    na Pousada clo Rio Quente, Roelrigues nunca nos deu atencao e toda
    vez que se dirigia a nos era para cobrar crescimento nas ofertas.
    
    Eu nao era o unico pastor com proLlemas cle depressao. Apesar de
    nao termos coragem de nos abrirmos uns com os outros, eu sabia que
    pastores mais amigos, como Edilson, Edson Menezes e Marcelo
    sofriam do mesmo mal. Quanclo 0 meu grande amigo, pastor Joao
    Ferreira' morreu (tomot1 um remedio errado, de acordo com 0 lando
    
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    ll
    
    medico), em seguida a morte de minha mae, mergul~hei numa depres-
    sao tao grande que pensei que nunca mais conseguiria sair daquele
    estado. Tinha medo de conversar sobre isso ate com minha mulher,
    apcsar de ela ter percebido que alguma coisa estava errada comigo.
    
    Por meio de um conhecido no Rio, tive acesso ao antidepressivo Le-
    xotan, que me deixava estugidamente ativo e alegre. Naquele estado de
    falsa serenidade eu procurava continuar a minha vida fazendo as mesmas
    coisas que sempre fiz, mas agora nao com tanto amor e dedicacao.
    
    O trabalho na Igreja havia se tornado uma tarefa insuportavel para
    mim. Eu vivia como se estivesse num palco o tempo todo, assumindo
    uma personalidade que ja nao era mais a minha. Representava na Igreja
    e representava mesmo quando estava em casa com minha familia.
    
    O vazio deixado pela morte de minha mae fez com que eu fosse
    buscar refugio em uma outra droga, alem do Lexotan. Foi entao que
    descobri a maconha, que passei a famar compulsivamente antes e
    depois dos cultos. Houve vezes em que dirigi reunioes de oracao com-
    pletamente high.
    
    Para conseguir a droga eu passei a fazer a loucura de freqentar as
    bocas de fumo da praca da Se. Correndo o risco de ser visto por um dos
    membros da minha Igreja, que funcionava naquele local.
    
    Procurando pelos vendedores de drogas fui assaltado duas vezes no
    Maciel, a area mais barra-pesada de Salvador. Numa das vezes o assal-
    tante, com raiva porque eu nao carregava dinheiro suficiente, mandou
    que me ajoelhasse para morrer e chegou a colocar o cano frio da arma
    na minha nuca. Acredito que so nao o fez porque viu a minha carteira
    de pastor. Mesmo assim foi embora levando minhas roupas e me dei-
    xando de cueca e meias em pleno centro da cidade.
    
    Eu nao estava satisfeito com aquela vida. Queria mudar de atitu-
    de, mas nao sabia como. Queria ajuda, mas nao sabia a quem pedir
    ou onde buscar. Em vez disso, continuava vivendo o meu papel cle
    analista de Bage, naquela farsa de ajudar as pessoas a resolver seus
    proElemas, numa aEsurda tentativa de dar aquilo que nao tinha nem
    para mim mesmo. Estava mais desorientado e vazio do que nunca.
    Toda a minha experiencia de vida havia sido alicercada na areia e nuo
    estava agentando a primeira tempestade.
    
    66
    
    Os meus proLlemas pessoais nao afetaram em nada meu trabalho
    como pastor. A igreja que dirigia na rna do Tijolo era uma das mais
    prosperas da capital e por isso ela foi escolhida para ser a primeira de
    uma serie de igrejas a passar por uma reforma que incluia revestimen-
    to de marmore, bancos de madoira de lei, calcada de pedras portugue-
    sas e aparelhagem de som de ultima geracao. Tambem foi a primeira a
    possuir uma livraria. Fui recompensado recebendo de volta o progra-
    ma de radio, que passou a ser apresentado das seis as oito da manha,
    de segunda a sexta. Horario nobre em materia de radio.
    
    O sucesso do meu trabalho (repetindo o que ja disse, o sucesso de
    um pastor na Igreja Universal depende de quanto ele arrecada) me
    levou a ser um dos sete pastores escolhidos para serem consagrados
    pelo bispo Macedo durante sua peregrinacao pelo Nordeste. Um fato
    interessante e que na Universal existiam pastores e pastores, a di-
    ferenca estava na consagracao. Poucos recebiam esta uncao, que era a
    mais alta condecoracao que alguem podia receber, abaixo apenas do
    bispado, que naquela epoca ainda era monopolio de Macedo e Ro-
    berto Augusto.
    
    Durante aqueles seis anos eu havia esperado ansiosamente pelo
    momento em que seria escolhido para ser consagrado. Os lideres di-
    ziam que Deus era quem escolhia a ocasiao. Por isso, desde meus
    primeiros dias na Igreja eu vinha pedindo a Deus que me desse aquela
    uncao, que em nosso conceito era o selo definitivo da aprovacao divina
    ao nosso trabalho vocacional.
    
    Mas isso tinha sido no passado. No estado de desanimo em que
    vivia, ponco me importava ser consagrado ou nao. Na verdade, todos os
    meus sentimentos em relacao a Igreja haviam modado. Eu ja nao pre-
    gava nem conduzia cultos como costumava fazer em anos anteriores.
    Comparecia a igreja, encenava mecanicamente o que eu era pago para
 
    





    fazer e falar e voltava para casa, me perguntando ate quando viveria
    aquela grande farsa.
    
    Tudo o que eu tinha sido; todo aquele fervor; todo aquele amor -
    tudo havia passado, dando lugar a uma revoltante sensacao de estar
    preso pelos pes e pelas maos. Obrigado a servir a Igreja Universal pelo
    resto da minha vida.
    
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    Enquanto vestia meu melhor terno naquela manha, me preparan-
    do para a consagracao, eu ia pensando no quanto aquele dia significa-
    ria para mim, apenas alguns meses atras. Ajeitei o no da gravata.
    Engoli meu indispensavel Lexotan. Fumei o tambem indispensavel
    cigarro de maconha e me dirigi para a igreja, na nova sede no largo
    dos Dois Leoes, onde, entre o pastor Oliveira, da Liberdade, e o pas-
    tor Vicente, de Catu, esperei pela minha vez de ser consagrado pelo
    bispo Edir Macedo.
    
                         IV
    
    Sexo e dinheiro eram as maiores causas de queda dos pastores. Talvez
    pelo fato de esses dois itens serem muito acessiveis dentro da Igreja.
    Quasc todos os pastores recebiam bilhetinhos de mulheres se decla-
    rando apaixonadas e implorando por uma tarde de amor em um motel
    dc beira de estrada. Algumas mulLeres que freqšentavam a igreja
    viam os pastores como galas de telenovelas que povoavam as suas fan-
    tasias. Sempre vinham a nos confessando os sonhos sexuais que ti-
    nham conosco. O mais estranho e que a maioria dessas mulLeres nuo
    c ra mais nenhuma garotinha debutante. Foram poucos os que, pelo
    menos uma vez, nao sucumbiram a tentacao.
    
    Sexo, porem, nao era motivo para mandar um pastor embora.
    A nao ser quando o aJulterio ganhava proporcoes de escandalo
    e chegava ao conhecimento dos membros da Igreja. Mas, sempre
    que possivel, as puladas de cerca de alguns notaveis eram abafadas
    com panos quentes e tudo acabava em pizza. Ou em acaraje, no
    
    caso.
    
    Agora, se a carne, como se sabe, e fraca, e sexo ilicito um deslize da
    natureza humana perdoado por Deus e pelo bispo, dinheiro, por ou-
    tro lado, era assunto muito serio. Toca-lo sem autorizacao era pecado
    capital. Imperdoavel. Quem fosse supreendido com a mao na botija
    era posto imediatamente no olho da rna, sem direito a mais nada.
    O desemprego, porem, nao intimidava os que se sentiam no direito
    de, a exemplo de seus lideres, tambem mamarom nas magras tetas do
    povo da Igreja.
    
    6tS
    
    Existiam pastores que mal ganhavam para comer, enquanto outros
    jantavam todas as noites em restaurantes de cozinha internacional.
    Havia os que viajavam em “nibus lotados, enquanto outros dirigiam
    carros clo ano. Os de igrejas pequenas vestiam ternos da Casa Jose
    Silva, enquanto a elite desEilava Armani. Muitos nao tinham condi-
    cao de colocarem os filhos numa escola particular, enquanto filhos de
    outros passavam as ferias na Disney. Muitos desses pastores injustica-
    dos ''roubaram''. Eu no lugar deles, teria feito o mesmo.
    
    Finalmente, 0 pastor Rodrigues resolveu atender meu pedido de
    transferencia para outro estado, o que me surprcendeu. Em cinco
    ocasioes anteriores ele me havia negado isto. Eu achava que era a con-
    vivencia com Rodrigues a raiz de todos os meus problemas e, uma vez
    longe dele, encontraria forcas para lutar e sair daquela condicao em
    que me encontrava. Resolvi tentar mais uma vez o pedido de transfe-
    rencia quando veio a ordem para que eu fosse trabalhar na igreja-sede,
    ao lado do pastor Teixeira c do pastor Jonas MaJureira.
    
    Jonas MaJureira era a mais nova aquisicao do bispo Macedo, a
    quem ele chamava de "santo homem", pois segundo ele o bispo o
    salvara das trevas lhe mostrando o caminho da luz. Ele tinha poncos
    meses de convertido quando foi promovido ao cargo de pastor e man-
    dado a Salvador para ajudar a formar a equipe da radio Babia. Perso-
    nalidade conhecida do publico carioca, Jonas tinha sido por varios
    anos o reporter de transito do Cidinha livre, programa da radio Tupi
    apresentado pela deputada Cidinha Campos.
    
    A aproximidade do pastor Jonas MaJureira com o bispo Macedo
    causou atrito entre ele e Rodrigues, fazendo com que os dois por
    diversas vezes trocassem farpas durante aquelas sessaes de tortura as
    segundas-feiras.
    
    Como sempre acontece com todo pastor cedo ou tarde, Jonas Ma-
    dureira rompeu cc~m a Igroja Universal, moveu uma acao contra o
    "santo homem", a quem passou a chamar de "canalha", e abriu a sua
    propria Igreja em Santo Andre, na regiao do A0C paulista. Nesta ego-
    ca, sabendo dos meus proLlemas na Universal, pessoalmente me
 
    





    convidou para ingressar na sua Igreja, onde assumiria a posicao de
    segundo na hierarquia. Agradeci e recusei 0 convite.
    
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