Nos Bastidores do Reino
A Vida Secreta na Igreja Universal do Reino de Deus
vinganca das vincancas, pagaria alguem para lavar-lhe as roupas. Essa
era, basicamente, a minha maior ambicao.
Nao sei como meus pais se conheceram e passaram a viver juntos.
Eles nunca tocaram no assunto, e nos, os filhos, nunca nos interessa-
mos em saber. Mas, qualquer que tenha sido o motivo, certamente
nao foi amor. Eles eram completamente distantes um do outro.
Dormiam separados, e minha mae sempre se referia a meu pai com
um "seu" antes do nome. Nao me lembro te-los visto brigar, mas
tambem nunca testemunhei um minimo gesto de carinho ou afeicao
entre eles. E pensar que essas duas pessoas viveram juntas por mais
de quarenta anos.
Meus pais faziam todo o sacrificio do mundo para nos dar uma
vida, no conceito deles, decente. Eu sabia que eles nos davam muito
mais do que aquilo que haviam recebido de seus pais. Mas odiava
aquela vida. Odiava aquele bairro. Era como se o meu mundo nao
fosse aquele. Como se o fato de ter nascido ali tivesse sido um grande
erro, sei la de quem. e dificil imaginar que possa existir um outro
logar como Boa Vista. As roas de barro vertiam poeira quando pas-
sava um cavalo ou a "baratinha" - era assim que chamavamos o “ni-
bus. A pocira ia se depositando por sobre a comida na mesa, os lencois
na cama e as roupas no varal. Nos dias de chuva, as estradas se trans-
formavam em um pantano. As pessoas que trabalhavam na cidade
tinham de cobrir os sapatos com sacos plasticos e levar consigo uma
garrafa d'agua, para que, uma vez no “nibus, podessem lavar os pcs.
A agua salobra que usavamos para beber e cozinhar vinha de um
poco infestado de sapos, cavado no fundo do quintal. Foram muitas
promessas e muitos prefeitos ate chegar laz eletrica. Para que nos
transformassemos de vez em trogloditas, so nos faltavam as vestimen-
tas de pele, um osso no cabelo e ter os Flintstones como vizinhos.
Eu sabia que estudar e me formar era o unico meio de sair daquele
lugar. A unica forma de poder ajudar meus pais. Enquanto alguns
garotos da rua eram bons de bola, eu devorava livros e nunca era re-
provado na escola. Sempre na metade do segundo semestre ja tinha
nota suficiente para passar. Mas tambem sabia que precisava mudar
de escola se quisesse chegar a algum lugar. O grupo escolar Padre
Manuel da Nobrega era um colegio de bairro que nao me daria ne-
nhuma base para chegar a faculdade, o meu objetivo.
III
Em um certo 7 de setembro, fui a Niteroi assistir a parada civica
escolar. O meu colegio, que pertencia a outra jurisHiscao, nao partici-
pava desses eventos. De qualquer forma, quem ali estaria interessado
em ver o Padre Manuel desfilar?
As escolas de Niteroi eram, se nao totalmente burguesas, muito
finas. Com um nivel de eclucacao satisfatorio, essas escolas eram fre-
qentadas pelos filhos cla classe media da cidade. Nenhum de nos,
filhos da Boa Vista, sonhava ingressar numa daquelas instituicoes
privadas.
No desfile, a segunda escola que ocupou a avenida Marechal Flo-
riano Peixoto chamou minha atencao, pela correcao e beleza de sua
apresentacao. A banda e os integrantes de todas as alas usavam um
elegante uniforme branco e verde, com certeza as cores da escola.
Fiquei encantado com 0 que vi e acompanhei 0 desfile ate que
ele se dissolvesse na frente do Colegio Plinio Leite, um dos mais caros
da cidade. Funcionava num imponente predio localizado bem no cen-
tro de Niteroi, foi a primeira coisa que notei. Aproximei-me da
portaria e pedi ao seguranca para dar uma olhadinha no lado de
dentro. O que vi me causou surpresa. O colegio tinha quadra de fute-
bol de salao, um enorme ginasio, laboratorios modernos e um exce-
lente nivel de ensino. Ali haviam estudado intelectuais, jornalistas e
politicos. Era ali que eu queria estudar. Queria fazer parte daquele
mundo, daquela realidade diferente da minha.
Voltei para casa e passei aquela tarde pensando numa maneira de
ingressar naquele mundo. Por diversas vezes reli a brochura de
matricula e cada vez estava mais convencido de que aquele era meu
lugar. O met1 dilema era nao saber de onde tiraria dinheiro para pagar
a matricula e as mensalidades. Eram caras demais para as condicoes
da minha familia. Nao tive nem mesmo a coragem de tocar no assun-
to com meus pais. Cheguei a conclusao de que a unica saida era uma
bolsa de estudos. Com informacoes adquiridas na brochura de matri-
cula, enviei uma carta ao diretor do colegio. Pedi uma bolsa de estu-
dos e prometi ser um dos melhores alunos se aquela oportunidade me
fosse concedida.
Quatro meses se passaram degois do envio da carta. Aquela altura
ja nao acreditava mais que receberia uma resposta. Aliviava-me o fato
de nao ter falado com ninguem sobre o assunto. Nao suportaria as
chacotas.
Numa tarde, eu tinha ido ao boteco comprar cerveja para meu pai.
Ao voltar para casa, com passos lentos e cansados devido ao calor insu-
portavel e a poeira da rua, avistei o carteiro que se aproximava. O
homem com uniforme amarelo feito de um material semelhante a
lona de circo tambem caminhava com passos lentos e cansados e, como
eu, tentava se livrar do suor que, misturado a poeira, se transformava
num lodo que escorria pelo rosto, formando uma especie de mascara
de barro e fazendo arder os olhos.
Raras vezes o carteiro passava por ali. As pcssoas que moravam
naquela rua nao recebiam nem mandavam cartas, nao havia corres-
pondencia para sair, nem para chegar. Nem mesmo a conta de luz,
que a prefeitura desistiu de mandar, ja que ninguem pagava. Recen-
temente, so me lembrava de 0 carteiro ter passado por ali por causa de
minha correspondencia com uma garota de Parati. Mas fazia quase
um ano que eu nao recebia uma carta dela.
Por isso, foi com muita ansiedade e ja adivinhando o que poderia
ser que corri em direcao ao homem.
- Moc~o. e para mim, nao e?
-Qual e o teu nome?-perguntou, of egante, enquanto se abanava
com a minha carta.
Ainda sem acreditar que alguem ali estava recebendo correspon-
dencia, o homem, degois de conferir o nome e o endereco, me esten-
deu um envelope com o emblema da escola de Niteroi. As batidas do
meu coracao eram tao fortes que pensei que o carteiro podia ouvi-las.
Aquela altura, meus irmaos ja me rodeavam, querendo saber o que
eu havia recebido. Extasiado, nao conseguia explicar o que estava
acontecendo. Tinha medo de abrir a carta. Temia ser uma recusa edu-
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cada. Algo como "recebi sua carta, mas infelizmente nao posso ajuda-
lo". Nao era. A carta, assinada pelo ptoprio dr. Plinio Leite, dizia que
eu ganhara uma bolsa de estudos que cobria o segundo grau tecnico e
os quatro anos de faculUade. Minha mae me beijava e meu pai se in-
cumbia de anunciar a vizinhanca. Tudo o que lembro ter sentido
naquele momento foi uma imensa gratidao. Mas, por mais que eu
tenha tentado, depois, nunca tive a oportunidade de agradecer-lhe
pessoalmente. Dois anos mais tarde, fui um dos escoteiros que carre-
garam a bandeira do colegio no funeral do dr. Plinio.
Meus irmaos eram muito mais velhos do que eu e por essa razao
tinhamos pouca afinidade. Cosme e eu eramos verdadeiramente dis-
tantes. Ja Pingo - que ganhou o apelido por ser um pinguinho de
gente quando nasceu -, era mais chegada a mim. A unica coisa de que
ela nao gostava era o fato de ter de me levar a tiracolo quando ia aos
bailes, nos fins de semana. Era essa a condicao exigida por meu pai
para permitir que ela fosse. Mas, em troca de doces e pipocas, eu nada
contava a papai sobre os inumeros namorados que ela arranjava numa
so noite Quer dizer, nao contava ate a proxima briga.
IV
O meu dia-a-dia, vivendo agora na Igreja Universal, era comple-
tamente diferente daquele que levava ate sair de casa. Levantava as
seis horas da manha. Comecava por lavar os banheiros. Depois, limpa-
va o piso e tirava o po das dezenas de bancos que se enfileiravam uns
atras dos outros no grande salao do templo. Procedia a essa limpeza
depois de cada uma das quatro reunioes diarias. Tambem fazia as ve-
zes de seguranca, tanto a noite como ao longo do dia. Tudo isso alem
de atuar como obreiro nas reunioes. Geralmente, eu fechava a igreja as
23 horas, encerrando assim uma jornada diaria de dezessete horas de
trabalho, cumprida religiosamente de segunda a segunda. Entretan-
do, eu nada recebia por esse servico, quer dizer, nao recebia nada em
dinheiro Meu pagamento era basicamente a comida: caBe da manha,
um PF no almoco e o jantar, que consistia normalmente em um san-
duiche e uma sopa. So nao comia quando 0 pastor decretava jejum de
-
~:
..~]Ld~ pcssoas atlrmam que quando ouvem 0 radio sentem como
se o pastor estivesse falando diretamente com elas. Na nossa progra-
macao comentavamos, ao som do piano de Richard Clayderman ou da
flauta de ZamBir, os proLlemas que afligem a maioria dos humanos
desemprego, vicios, doencas, proElemas conjugais e financeiros. De-
pOiS de um deSate no qual discutiamos os efeitos desses proLlemas na
vida das pcssoas, apresentavamos a solucao para tudo isso como uma
unica visita a um dos endere,cos da Igreja. Uma vez que a pcssoa ia a
igre]a, ela era orientada a fazer uma corrente de doze semanas. Cor-
rente na qual ela viria a se tornar emocionalmente presa. Os que que-
bravam essa corrente imediatamente passavam a ter visoes e ouvir
vozes. Como Hollywoocl, nos sabiamos explorar o medo intantil que
as pessoas tem da figura do diabo.
Informado do sucesso na Bahia, o bispo Macedo resolveu marcar
uma concentracao no maior estadio de Salvador. Ele havia acabado de
lotar o Maracana. E estava disposto a lotar todos os estadios das gran-
des capitais. Dois meses antes comecamos a trabalhar na promocao do
que seria o maior de todos os nossos desaflos: lotar o Fonte Nova.
Queriamos mostrar aos padres, pastores, pais e maes-de-santo da Bahia
que o reinado deles havia acabado. eramos nos quem davamos as car-
tas agora. Tambem queriamos mostrar aos pastores da propria Uni-
versal em outros estados que nos, da Bahia, eramos os melhores.
Todos os pastores do interior fcaram incumbidos de alugar um
“nibos e levar o maior numero de pessoas possivel. Vinhetas nas
raUlos e nas televisoes, outdoors espalhados pelo estado prometiam
curas e solucoes. Durante as reunioes na igreja, distribuiamos envelo-
pcs e faziamos com que os fieis colocassem ali o que chamavamos de
oferta de sacrificio" (algo como o salario do mes) e um pedido de
oracao, que o bispo levaria para Israel, a Terra Santa. No dia cla tao
propalada concentracao, uma multidao ja se aglomerava ao redor do
estadio muito antes de os portoes serem abertos, as nove da manha.
Quando, enfm, o WooUstock religioso comecou, milhares cle pcs-
soas, plsoteando velhinhas e criancas, travaram uma disputa agressiva
para obter un1 bom lugar para ouvir o bispo e receber dele os mila-
gres, que era o que interessava aquela gente.
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Naquela egoca em que o termo y~pt~ie estava em voga, o bispo
Macedo, portando Rolex, Ray-ban, Mont Blanc e a sempre presente
Herm s, subiu no palanqLIe que fora especialmente armado para ele
no centro do gramado. Nao conseguia esconder sua alegria. O estadio
da Fonte Nova estava completamente lotado. Repetia-se em Salvador
0 fen“meno do Maracana, no Rio.
Naquela tarde, depois de recolher os envelopes com o "sacrificio" e
com os pedidos de oracao, que seriam levados para o monte das Oli-
veiras, em Jerusalem, o bispo pediu aos seus seguidores baianos uma
oferta especial para comprar uma emissora de radio em Salvador, as-
sim como seus ficis cariocas o haviam contemplado com a radio Copa-
cabana.
- Sera que os cariocas tem mais f`e que os baianos; - perguntou
o bispo a multidao.
- NAO! - a resposta retumbou como um trovao.
As ofertas vieram em forma cle dinhc-iro e joias. Passamos tres dias
trancados em uma sala contanclo os sacos de dinlleiro levantados no
Fonte Nova. No final, o dinheiro foi clepositado na conta da Igrcia,
no Braclesco, em Salvador. O ouro seria levado para o Rio de Janeiro
e transformado em barras. Quanto aos pedidos de oracao que seriam
levados para Israc-l - bem, eles foram queimados na praia da Boca do
Rio.
Quanclo eu era um simples fiel, nao imaginava o que se passava
nos bastidores, degois que a cortina cai. Os atos de alguns pastores
logo me levaram a descobrir que a Igreja Universal nada mais era do
que uma empresa com fins lucrativos como qualquer outra na ciranda
financeira A unica diferenca era 0 produto vendido: sal que tira vicio,
lencinhos molhad`'s no "vinho curativo" - o conhecido K-Suco -, agua
da Embasa, qL~e diziamos ter vindo do Rio Jorclao, azeite Galo, que
davamos ao povo como legitimo oleo ungiclo proveniente de Jerusa-
lem, e uma lonca lista de outros prorlutos tao falsos quanto as gotas
de leite extraidos dos seios da Virgem Maria, que eram vendidas na
Europa, nos primeiros secLIlos, aos otarios em busca de milagres.
Como ser pastor era antes de tudo uma "vocacao" e jamais uma
profissaO, nao tinhamos vinculo empregaticio com a I~reja Univer-
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:
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sal. Nossos salarios eram pagos em cash, isentos de qualquer taxa ou
imposto. O valor desses salarios variavam: cada caso era um caso n~c
leis do Reino.
Apesar de sermos estritamente proibidos de comentar nossos
ganhos uns com os outros, sabiamos da injustica salarial. Pois en-
quanto dirigentes de igrejinhas de periferia ganhavam salarios min-
guados e insuficientes para sustentar a familia, os pastores notaveis
ttocavam de carro a cada ano e passavam fins de semana em reJortS
acompanhados de suas belas mulheres trajando Chanel e portando
bolsas Louis Vuitton.
IV
A Liberdade era o maiot bairro de Salvador. Lugar cheio de gente,
vielas e ladelras com coloridas favelas encrustadas em sua peUra. Ber-
co do internacional Ile-Aye. Ali ja existia um templo da Universal
que funcionava ha quase um ano, mas que nao havia ainda alcancado
as metas desejadas.
Quando ganhei a lideranca aEsolota da Igreja naquele bairro sabia
que na verdade estava ganhando um abacaxi para descascar. Durante o
pouco tempo de existencia a Igreja, ela tinha sido sacudida por dois
grandes escandalos. O primeiro ficou por conta do pastor que a inau-
gurou, Rodrigues da Encarnacao. Achando que seria melhor negocio
abrir sua propria Igreja, o pastor Encarnacao saiu, arrastando consigo
metade dos membros da Liberdade.
O pastor Santos, que Ihe sucedeu, alem de sofrer de um serio proLle-
ma de alcoolismo, se envolveu com algumas das mulheres que freqen-
tavam a igreja e teve de ser transferido, numa tentativa de abaLar os
comentarios que surgiram entre os obreiros e ja estavam chegando ao
povo. Ao colocar-me na Liberdade para arrumar a casa, o pastor Paulo
estava me dando um voto de confianca. E eu aceitei o desafio.
No inicio surgiram protestos, no interior da Igreja, contra minha
poslcao. Alguns membros achavam que, por eu ter somente dezessete
anos, era muito inexperiente para o cargo. A meu favor, eu tinha a
opiniao do lider e das pessoas que ja conheciam meu trabalho.
1
1
~:1
.
~,
Apresentando um programa diario com duracao de duas horas na
radio Bahia, emissora recem-comprada pela Igreja Universal, em ponco
tempo elevei a Liberdade a condicao de terceira igreja do estado. Atras
apenas da sede e do templo de Feira de Santana, do pastor Teixeira.
Passei entao a ser o centro das atencoes dos outros pastores, que me
pediam uma ponta no programa e disputavam espaco na minha agen-
da para uma visita a suas igrejas. O simples anuncio de que eu estaria
visitando a igreja tal ja era suficiente para arrastar uma grande multi-
dao aquele lugar. Talvez o que me destacasse fosse que, ao contrario da
maioria dos pastores, eu ainda me mantinha fiel aos principios reli-
giosos, que me acompanhavam desde que tinha tomado a decisao de
ser um pregador do Evangelho.
Esse meu sucesso me garantiu um lugar no fechado circulo dos
notaveis, o primeiro escalao da Igreja. Como eles, passei a ter ganhos
extraordinarios. Alem de um inacreditavel salario, recebia tambem
10% da arrecadacao mensal da Liberdade, o que, para um menino de
dezessete anos, era muito dinheiro.
Ganhando muito mais do que precisava, eu me dava ao luxo de
todo fim de semana entrar num taxi aereo com destino as praias de
Ilheus e Porto Seguro. Nunca tive problemas de consciencia por isso.
Afinal, aquilo nao era dinheiro roubado. Era o meu salario. Eu nao
tinha culpa se a maioria dos outros pastores nao eram tao bem sucedi-
dos como eu.
A unica coisa que me causava um certo mal-estar era o fato de que
todo aquele dinheiro gasto futilmente vinha de pessoas que mal ti-
nham o que comer e iam a pe para a igreja, economizando o dinheiro
do “nibus para oferta-lo durante as reunioes.
Contudo, o comportamento dos lideres me aEsolvia de qualquer
sentimento de culpa. Entre os pastores comentava-se a boca pequena
que as famosas "peregrinacoes da fe a Terra Santa" nao passavam de
eXCursoes turisticas ao Oriente Medio, com direito a cassinos, noita-
das em Tel Aviv e divertidos passeios de camelo as piramides egipcias.
Alem disso, os lideres estavam constantemente em viagens "de inte-
resse da Igreja" a cidades europeias com forte apelo turistico, como
Paris, Roma e Londres.
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Por que, entao, eu me sentiria culpado por passar fins de semana
em Porto Seguro?
A falta de amigos era uma coisa que me afligia durante a adoles-
cencia na Igreja Universal. A diferenca de idade entre mim e os outros
pastores era uma barreira que me impedia de ter comunhao com eles.
A maioria deles era composta de pais de familia e mesmo os solteiros
eram muito mais velhos que eu. As vezes sentia falta do convivio com
jovens de minha propria idade para ir ao cinema, passear e conversar
sobre coisas concernentes aquela fase.
A Igreja Universal me prejudicou no sentido de que, me tirando
da convivencia de meus pais, nao assumiu o 1LIgar deles na minha
vida. Durante a adolescencia, uma fase em que o homem edifica a base
do seu carater, eu fui deixado so, entregue as minhas duvidas, sem
nenhum esclarecimento ou orientacao.
Uma das minhas funcoes como pastor era fazer as vezes de psicolo-
go. Passava as tardes atendendo as pcssoas naquilo que chamavamos
de Consultorio Espiritual. Ficava horas atras de uma mesa aconse-
lhando os fieis na solucao dos seus proLlemas pcssoais. Para mim
alem de estressante, isso era embaracoso. Sem nenhuma ideia do que
seria uma relacao sexual, eu me via aconselhando senhoras que me
perguntavam o que fazer quando o marido queria ir alem do sexo
convencional. Outras funcoes que eu detestava eram fazer enterro e
visitar pessoas a beira da morte em U1Is.
Em uma ocasiao, visitando um rapaz que havia sido severamente
esfaqueado, simplesmente desmaiei ao ver o sangue que jorrava de sua
garganta dilacerada. Uma outra vez, vez fui levado a uma roca em
Cachocira, no interior da Bahia, para orar por um homem que sofria
de uma doenca rara que comia a sua carne. Ao chegar la, encontrei
aquela massa de carne viva posta sobre folhas A~ h^~n~n^;r~ ^ ^~- ~ ^
um terrivel mau cheiro.
Em outra ocasiao visitei uma moca retardada que tinha sido estu-
prada no sanatorio em que recebia tratamento. O estoprador, certa-
mente um dos empregados do sanatorio, deixou a menina em tal esta-
do que varios dias degois da visita eu ainda tinha dificulUades d~ ro-
mer e dormir.
ll_• ~ oWdli-11~10
52
~'
.~ .
_I
Acredito que todas essas cenas explicitas de mundo cao vividas na
adolescencia influiram na minha personalidade, fazendo com que eu
me tornasse uma pessoa vazia e deprimida.
A questao do sexo era para mim um total misterio, alem de tabu.
Sem nenhuma orientacao dos meus superiores ou de quem quer que
fosse, tudo o que eu sabia do assunto havia aprendido nas E'aginas da
Biblia. Numa ocasiao, ejaculei enquanto dormia e, quando acordei
molhado, achei que tinha cometido o mais grave dos pecados contra
Deus, o que me lancou numa serie de jejuns e varias horas de joelhos
implorando o divino perdao.
Nesta mesma egoca um pastor veio para ser treinado por mim. O
meu bom desempenho a frente da igreja da Liberdade fizera com que
ela se tornasse um dos pontos de treinamento de novos pastores. Por
minhas maos passaram, entre outros, a missionaria Lindanil, que veio
a ser a primeira pastora do Nordeste, e AlLerto Pecanha, que come-
cou o trabalho da Universal na Espanha e na Argentina.
Sendo o pastor que eu deveria treinar (por respeito a sua pessoa e
familia prefiro ocultar seu nome) uma pessoa sorridente e falante, logo
ganhou minha amizade e confianca. O fato de ele ser quinze anos mais
velho que eu tornava-o mais experiente. Isso fez com que eu confiasse
a ele 0 meu segredo. Ele entao me liberou daquelas neuras. Aprendi
que amanhecer molhado era comom em um jovem sem vida sexual.
Ele certamente me ensinou muitas coisas.
Continuamos amigos mesmo depois que seu treinamento termi-
nou. Ele foi transferido para uma igreja no suburbio de Salvador, mas
pelo menos duas vezes por semana nos encontravamos para ler a Bi-
blia juntos ou sair para um sorvete. Nossa amizade era uma coisa ine-
dita entre os pastores, pois eles normalmente nao tinham comunhao.
Desde meus primeiros momentos na cugula da Universal pode perce-
ber 0 clima de competicao reinante entre os pastores. Todos queriam
destaque e consagracao. eramos todos engajados numa verdadeira
guerra santa: espionando uns aos outros, copiando ideias, dedurando,
fazendO loljl~y. Era a lei da selva. Esses eram os mesmos individuos que
ocupavam os microfones e pulpitos pregando irmandade e amor entre
os homens.
53
~pL'crlsla era parte do nosso trabalho.
Entre mim e aquele pastor existia uma verdadeira amizade. Eu
confiava nele e ele em mim. Numa tarde estavamos conversando en-
quanto tomavamos um sorvete e eu Ihe disse que estava gostando de
uma moca que era obreira de minha igreja. Percebi que ele modou
imediatamente de comportamento, passando a ficar inquieto e atra-
palhado com o sorvete na mao. Em nenhum momento me passou pela
cabeca que o motivo de sua visivel perturbacao era o fato de eu estar
querendo ter uma namorada.
No dia seguinte ele me procurou e disse estar apaixonado por mim.
Eu tive uma crise de riso. Ele era um cara brincalhao e naturalmente
engracado, do tipo Jerry Lewis. Teria sido um otimo comediante se
nao tivesse optado pelo pastorado. Mas naquele momento ele nao es-
tava brincando e eu parei de rir quando percebi isso.
- Voce e homossexual? - perguntei.
Jurou que nao era e disse nao saber o que estava acontecendo com
ele. Eu o aconselhei a conversar com o pastor Paulo, em bosca de
ajuda, e ameacei eu mesmo contar se ele nao o fizesse. Na verdade,
tanto ele quanto eu sabiamos que se o lider viesse a ter conhecimento
daquilo ele seria provavelmente expulso da Igreja. Mesmo porque
naquela epoca ele era um pastor sem nenhuma expressao, o que o tor-
nava facilmente removivel. Mas, usando o bom senso, decidimos entao
que deveriamos manter distancia ate que ele superasse aquela fase
confusa. Eu so nao entendia porque aquilo havia mexido tanto
comigo. Passei varias noites depois daquela conversa pensando no
assunto. Aquilo serviu para aumentar todas as minhas duvidas em
relacao a sexualidade.
Nao vi meu amigo nas semanas que se seguiram. Nem mesmo
nas reunioes de pastores que eram realizadas nas tardes de segunda-
feira. Ate que um dia recebi um bilhete dele:
"Estou indo passar o fim de semana em Recife. Se voce quiser vir
comigo, me encontre hoje a noite no aeroporto."
O bilhete com as passagens tinha sido enviado por ele por inter-
medio de um obreiro. O fato de estar se arriscando daquele jeito foi
uma prova de que realmente ele sentia alguma coisa por mim.
54
V
Ao voltar daquela viagem ao Recife eu sabia que minha vida nao
seria mais a mesma. Eu sempre havia sido sincero no teor da minha
pregacao. Pregava aquilo que vivia e esse era o segredo da minha po-
pularidade. Leituras diarias da Biblia e vigilias de oracoes eram para
mim tao essenciais quanto comer e beber. Eu amava a Deus de todo o
meu coracao e seria capaz de morrer pela causa do Evangelho Procu-
rava levar uma vida pura, respeitando o meu corpo e a Igreja. Convi-
via com constantes escandalos de pastores aJulterando e rouLando a
Igreja, mas eu sempre procurava me esquivar de mulheres e dinheiro,
as principais razoes da queda de um pastor.
No entanto, eu havia perdido numa noite todo aquele sentido de
pureza que havia guardado intacto dentro de mim. Havia pecado
contra Deus e contra mim mesmo. Havia tido minha primeira relacao
sexual, com um homem, tambem pastor, da propria Igreja Universal
do Reino de Deus. Pensei em largar tudo, pois ja nao me sentia mais
digno de continuar pregando a palavra de Deus A condenacao de
Leviticos martelava diuturnamente a minha mente: "MalUito e o ho-
mem que se deita com outro homem".
Uma terrivel angustia tomou conta de mim. Sufoquei todo aquele
sentimento e tentei seguir adiante sem pensar no que havia aconteci-
do. Como se isso fosse possivel. Nao consegui conviver com aquele
sentimento de culpa e pecado por muito tempo. Mesmo pensando
que seria expulso da Igreja, procurei o pastor Goncalves, que era o
novo lider do estado, e lhe contei tudo o que havia se passado entre
mim e o outro pastor Ele me perguntou se mais alguem sabia disso.
Com a minha resposta negativa, me orientou a esquecer o ocorrido e
nao fazer "uma tempestade num copo d'agua".
Por algum tempo eu vinha sendo pressionado pelos lideres para
casar Achavam que comandando uma igreja do porte da Liberdade,
eu precisava de uma esposa, que alem de me ajudar na organizacao de
grupOs de senhoras e criancas me daria um ar de responsabilidade,
fazendo me parecer mais velho do que meus dezoitos anos. A escolhi-
da foi uma das mais dedicadas obreiras da Igreja. Uma moca bonita,
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inteligente e profunclamente crista. Marcamos a data da cerim“nia e
convidamos o bispo RoLerto Augusto para celebra-la.
A rua General Savaget estava intransitavel naquela tarde. Cente-
nas de pessoas, inclusive do interior do estado, haviam comparecido a
cerim“nia religiosa, que seria celebrada pelo bispo. Naquela igroja
lotada, decorada com uma variedade de flores brancas, fizeram-se ouvir
as primeiras notas que saiam do orgao acompanhando um coral que
havia siclo contratado exclusivamente para a ocasiao. Ali na frente,
sem ainda ter certeza do que estava fazenc30, eu me preparava para
receber a noiva que caminhava em minha direcao com passos lentos,
trazida pelo braco clo pai. Enquanto isso, sua mae, ao meu lado, enxu-
gava as lagrimas que teimavam em lhe borrar a maquilagem.
O bispo comecou o seu sermao nLIpcial, enquanto na minha cabeca
os pensamentos movimentavam-se como um furacao. Ele pregava a
ficielidade como receita para uma uniao feliz e eterna. Estavam ali
todos os pastores, inclusive o meu amigo. Eu nao estava casanclo por
amor. Casava sumentc para provar a mim mesmo que era homem.
Nun1 cleterminado momento do ritual, fomos instruidos a olllar
un1 ao outro nos olhos e repetir as palavras do livro cle Rute. Na frcnte
do altar, sendo alvo cla atencao cle todas aquelas pcssoas, olhanclo nos
olhos cle Graca, pela primcira vez eu percebi o quanto ela me amava,
e o quanto esperava o mesmo cle mim.
"Aonde voce for, irei eu", comec,-amos o juramento "...c aonde dor-
mir, ali dormirei tambem. O seu povo sera o mcu povo e o seu Deus,
meu Deus". A igreja emocionada, em completo silencio, nos OLIVi~i
naquele momento de juras cle amor eterno: "...e que nao seja outra
coisa alem cla morte a me scparar de ti", conclu~mos.
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