Nos Bastidores do Reino

A Vida Secreta na Igreja Universal do Reino de Deus



                      PREFACIO
    
    O`s originais de Nos Bastidores do Reino chegaram as minhas maos
    ha mais de um ano. O intrigante e que eu morava no meio do nada,
    perto das montanhas de Sao Francisco, na California, e o remetente
    era um desconhecido brasileiro que vivia em Nova York. Abri o enve-
    lape na varanda da minha casa, me perguntando como ele me achou e
    por que eu. Estava ocupado, tinha compromissos marcados, mas li a
    primeira linha e so sai da varanda ao anoitecer, depois de ter lido o
    livro em uma tacada. A primeira coisa que me veio a cabeca: ainda
    bem que ele me achou e me escolheu.
    
    Prepare-se: ler Nos Bastidores do Keino e um evento de transforma-
    cao. Ninguem sera 0 mesmo depois de conhecer os detalLes da vida de
    Mario Justino, mas vale a pena correr o risco. Ainda nao se criou uma
    designacao para este estilo literario. Seria o que, literatura emocional,
    visceral? Pensando bem, ponco importa 0 estilo. e um livro, como
    todos os livros buscam ser: um acontecimento na vida do leitor.
    
    A comecar, a historia nebulosa da formacao de um pastor da Igreja
    Universal do Reino de Deus, que cresceu com a crise espiritual do
    homem moderno, dando respostas objetivas a carencia moral de mi-
    lhares de fieis abandonados por outras seitas. Os metodos da Igreja
    sao questionados. Aproveita-se da fe para extorquir milhoes? Pode-
    riamos concluir que a religiao vira um negocio, e uma tecnica e de-
    senvolvida para confundir a "vitima", relendo a Biblia e deturpando o
    pensamento cristao.
    
    Nos bastidores, premiam-se os pastores que conseguem arrecadar
    mais dinheiro. As foSocas giram em torno do sucesso ou fracasso fi-
    nanceiro de tal filial. O poder soLe a caboc,a, e um estilo de vida nada
    religioso passa a ser a norma entre os lideres da Igreja. De festa em
    
                         9
                          
        





    festa, nosso personagem e contaminado pelo virus da ATDS. e eXPU1SO
    da Igreja, e desce aos poucos os degraus do inferno.
    
    Em pouco tempo, o garoto da Universal perde tudo e vive seu
    calvario pessoal, nas sombras de uma estacao de metr“ de Nova York,
    aquecendo-se numa fogueira com outros mendigos (os despossuidos),
    pensando em ronbar para comprar drogas e planejando o assassinato
    do bispo Edir Macedo, lider da seita.
    
    Nao e apenas um livro-denuncia. A propria teologia esta em deba-
    te. De repente, estamos, agora sim, em frente a poreza e a verdade do
    ideal cristao. Chegamos a acreditar que Mario Justino e mais Jesus
    que toda a pompa papal e a conta bancaria da Universal. Sao escritores
    como ele que podem nos salvar e iluminar alguns caminhos. Faca
    bom frato das palavras de um homem que viu de tudo, que viveu os
    extremos, e pode ser considerado, em teoria, um heroi.
    
    MARCELO RUBENS PA1VA
    Sao Pa~lo, pri7~zavera de 1995
    
                         10
    
                     INTRODUcAO
    
    Nao considero este livro uma autobiografia. Essas sao escritas por
    aqueles que ja viveram tudo. Ele tambem nao pretende ser uma busca
    de remissao, nem uma tentativa de me justificar a quem quer que
    seja. Acima de tudo, este livro nao tem a pobreza de ser uma forma de
    vincanca.
    
    Talvez eu nao tivesse o direito de escrever uma historia que envol-
    ve tantas pessoas. Mas, no decorrer dos ultimos anos, eu vinha sentin-
    do uma irresistivel vontade de contar a minha verdade. Entretanto,
    seria impossivel contar essa historia sem que se revelasse, no anda-
    mento natural da narrativa, a historia dos poroes da Igreja Universal.
    Infelizmente, as duas historias estao fundidas em uma so. Sexo, di-
    nheiro e drogas se confundem, no mesmo pulpito, com oracoes e sal-
    mos de Davi.
    
    Lamento pelas pessoas que se sentirao traidas por esta obra. Mas
    espero que ela contribua para que se forme uma discussao de ambito
    nacional sobre a influencia nociva que pseudopastores vem exercendo
    sobre as massas, fazendo com que menores abandonem familias, e
    estudos, desgracando assim seu futuro e sua vida. Isso, se nao e, deve-
    ria ser caso de policia.
    
    As poucas pessoas que conseguem se liberar desse crack religioso
    se veem no meio de um profundo vazio. Como se o tapete magico
    tivesse sido puxado repentinamente de sob seus pes. Em muitas vezes
    as seqelas sao irreparaveis. Nos Estados Unidos existem varias orga-
    nizacoeS, algumas governamentais, que dao apoio psicologico e legal
    a essas pcssoas vitimadas por grupos como a "igreja" de Edir Macedo.
    
    Eu acredito que no Brasil essas vitimas sejam em grande numero -
    ex-pastores, missionarios, evangelistas, obreiros, membros. Pessoas de
    boa fe que deram seus lombos para que sobre eles fosse construido o
    imperio de Macedo. Somente denunciando elas serao ouvidas.
    
    I.~
    
    11
    
        -





    r
    
    Recuso-me a acreditar que a Constituicao, quando protege a liber-
    dade de culto, tambem proteja a lavagem cerebral e a exploracao fi-
    nanceira da credulidade publica.
    
    A principio, este livro pretendia ser uma denuncia, um clamor por
    jostica, mas, na medida em que foi sendo concebido, foi assumindo a
    forma daquilo que realmente e: a trajetoria de alguem que, buscando
    o desconhecido, encontrou a si mesmo.
    
    MARIO JUSTINO
    Nova York, verao de 1995
    
    2
    
    PREFUDIO
    
    - Ora, nao se faca de imbecil! Voce sabe por que tem de ir. Mas vou
    
    i
    
    refrescar sua mente. Voce nao pode mais ficar com a gente porque tem
    AIDS!
    
    Quando Edir Macedo, o bispo da Igreja Universal do Reino de
    Deus, me chamou em seu escritorio, no fundo eu sabia que era isso
    que ele me diria. Dois meses antes eu enviara uma carta ao pastor
    Honorilton Goncalves, na qual contava o meu proLlema. Goncalves
    fora um grande amigo, desde os meus dezesseis anos, quando fui
    transferido do Rio para ser pastor na Bahia, estado em que ele era
    o vice-lider.
    
    Goncalves agora era lider nacional, e, em nome da nossa antiga
    amizade, pensei nele como alguem que podia me ajudar a sair daquele
    estado de torpeza e confusao. Na carta, contei a ele tudo o que estava
    acontecendo comigo. Disse, inclusive, que achava estar com "aquela
    doenca incuravel".
    
    Por varias semanas esperei pela resposta do pastor Goncalves. Nunca
    chegou. Em compensacao, fui chamado ao escritorio do bispo Edir
    Macedo, que, a epoca, encontrava-se em Nova York fugindo das
    acusacoes de charlatanismo feitas pela policia de Sao Paulo. Com
    o conhecido olhar que aterrorizava seus subalternos, o bispo ordenou
    que eu juntasse minhas coisas e fosse embora. Eu nao interessava mais
    a Igreja Universal do Reino de Deus. Pior, podia "compromete-la".
    Ao insistir em saber por que estava sendo varrido da Igreja depois de
    onze anos de servicos prestados, recebi do bispo aquela resposta aspe-
    ra, bem no estilo dele.
    
    Disse que nao tinha para onde ir e implorei que ao menos me
    mandasse de volta para o Brasil. Respondeu-me afirmando que eu
    tinha uma passagem de volta e que deveria usa-la. Mas nao existia
    passagem alguma. A passagem com que tinha ido do Brasil para Por-
    tugal fora obtida numa promocao e tinha apenas tres meses de valida-
    
                         13
                          
        





    de. Como permaneci em Lisboa por quase um ano, perdera a validade.
    O mesmo acontecera com a passagem de LisFoa para Nova York.
    
    Inutilmente, disse que escrevera a carta num momento de deses-
    pero e que nao tinha certeza se estava mesmo com a doenc,a. Nao
    adiantou. Ele se mostrou irredutivel diante das minhas suplicas e ex-
    plicacoes. Nada poderia demove-lo da ideia de me punir severamente.
    
    Ao sair do escritorio do bispo, a primeira coisa que me veio a cabe-
    ca foi ligar para Eliane. Disse-lhe que algo terrivel me havia aconteci-
    do e que precisava de sua ajuda. Ela me recebeu em sua casa sem ao
    menos perguntar o motivo pelo qual a Igreja estava sendo tao severa e
    cruel comigo. Fiquei la por uma semana. Depois, tornei a implorar ao
    bispo Macedo para que me desse algum dinheiro ou me mandasse de
    volta para o Brasil.
    
    Inflexivel como sempre, o que achava ser uma virtude, o bispo nao
    voltou atras:
    
    - Aqui, o!!! - disse ele, ao mesmo tempo que desferia uma "bana-
    na", aquele classico gesto em que, erguido, o punho cerrado assume a
    forma de um imenso penis em estado de erec,ao.
    
    Degois do que acabara de experimentar, comecei a caminhar feito
    um desnorteado pelas ruas da cidade. Com passadas largas e firmes,
    tentava entender o que estava acontecendo comigo. Uma das razoes
    pelas quais me tornara uma das figuras mais populares dentro da imen-
    sa comunidade da Igreja Universal tinha sido exatamente a habilidade
    com que conseguira me movimentar, a habilidade para contornar pro-
    blemas e sempre ter, nas situacoes dificeis, a tal carta escondida na man-
    ga. Agota, no entanto, todo aquele jogo de cintura tambem parecia ter
    virado as costas para mim. Sentia-me inteiramente impotente. Desar-
    mado. Tudo o que queria era chorar. E nem isso conseguia.
    
    Nao levaram muito tempo para descobri r que Eliane estava me abri-
    gando. Ao regressar a casa, encontrei o pastor Natanael. Ele estava ali a
    mando do Bispo. Queria checar meus pertences. Natanael disse que
    depois da minha saida fora notado o sumico de um gravador, que era
    usado para gravar testemunhos dos milagres de Macedo. Desconfiavam
    que eu havia roubado o equipamento. Ao tentar impedi-lo de revistar
    minha mochila, atracamo-nos em uma ingloria (para mim, dado o mou
    
    14
    
    estado cambaleante) luta corporal. Enquanto isso, aos gritos, Eliane
    suplicava que parassemos com aquilo. Fui dominado facilmente por
    Natanael, que, tento rasgando a bolsa, ia chutando tudo o que caia,
    espalhando minhas roupas, procurando pelo gravador.
    
    Provando uma humilhacao que nunca imaginei passar, fiquei jo-
    gado num canto da sala tossindo e jurando que me vingaria de todos
    eles. Um por um.
    
    - Como se voce fosse viver para isso - disse Natanael com um
    sorriso ir“nico, saindo sem encontrar o que viera boscar e deixando
    para tras a minha figura miseravel recolhida ao chao.
    
    Nao sei por quanto tempo fiquei ali, no canto daquela sala, a cabe-
    ca baixa, os olhos parados e o tempo se esvaindo diante deles. As ima-
    gens de minha trajetoria na Igreja passavam velozmente pela minha
    mente, como num aparelho de video.
    
    O odio me desvirginava.
    
    Encolhido no canto, sentia-me a pior das criaturas. Rastejando no
    po, como a serpente amalUicoada. Como Lucifer, caido em desgraca.
    Destituido de toda a gloria. De toda a luz.
    
    Esforcava-me para nao chorar. Seria reconhecer a vitoria deles. Com
    um no na garganta e a respiracao pesada, senti minha boca se encher
    de uma saliva amarga. Por entre os dentes, emitia grunhidos cujo
    significado nem eu mesmo sabia. Naquele momento, foi definitiva-
    mente possuido pelo pior sentimento conhecido pela raca humana. E
    esse sentimento, agora, iria reger a minha vida.
    
    Meus pensamentos, que corriam longe, arrebentaram a linha te-
    nue que separa o bom senso da loucura quando eu comecei a conside-
    rar a idoia de matar. Eu nao tinha mais nada a perder. Tudo o que
 
    





    tivera havia escorrido por entre os meus dedos: mulher, filhos, mous
    pais, meus sonhos, minha fe, meu Deus. Tudo tinha ido.
    
    A unica coisa que me restara era o odio mortal pelo bispo Macedo
    e sua Igreja Universal.
    
    A ideia de mata-lo pareceu-me uma forma deliciosa de fazer josti-
    ca. Ainda fraco, levantei a cabeca e fiquei de pe. O pensamento me
    revigorou e me fez sentir melhor A saliva se fez doce. Havia, enfim,
    encontrado uma razao para continuar vivendo.
    
                         1 -
                          
        





                    CAPITULO UM
              1980: BEM-V]NDO AO REINO
    
                         I
    
    Era uma tipica noite de sabado, em que os barzinhos estavam re-
    pletos de gente jovem, entretidos por animadas conversas em suas
    mesinhas ao longo da calcada. Em meio a esse borEurinho de casais e
    amigos que ocupavam as rnas, eu caminhava sem rumo e com o sem-
    blante caido. Minha figura contrastava com aquelas pcssoas que, indo
    e vindo, passavam por mim exibindo uma
    
    invejar.
    
    alegria que eu comecava a
    
    Tinha medo dc estar dando o passo errado. Por alguns instantes
    pensei que talvez fosse melhor voltar para casa e fazer de conta que
    aquela ideia nunca me ocorrera. Mas sabia que algo me faltava e, por
    uma estranha razao, tinha certeza de que naquela noite encontraria o
    que vinha buscando, mas nao sabia exatamente o que era.
    
    Duas semanas antes, eu havia sintonizado um programa na Radio
    Metropolitana do Rio de Janeiro. O programa prendeu minha aten-
    cao e a partir dali me manteve cativo todas as noites. Esperava com
    ansiedade ouvir o tema de abertura e, quando isso acontecia, eu ja
    tinha colocado sobre o radinho de pilha um copo cheio da agua que
    beberia depois da "prece poderosa".
    
    Ainda hoje nao estou bem certo do que me atraia naquela progra-
    macao. Afinal de contas, tinha apenas quinze anos, uma fase em que a
    maioria dos jovens nao ocupa a mente com determinados proLlemas
    que afligem os aJultos. Porem, eu era diferente. Estava sempre preo-
    cupado com as dificulHades dos meus pais. Alem disso, eu era uma
    crianca profunclamente triste. Desde muito pequeno, escondia-me pelos
    cantos do quintal. Era um obstinado que buscava indiscriminadamente
    a solidao. Em certas ocasioes, sem nenhuma razao aparente, passava
    horas calado e triste. Esse vazio acabou por impulsinar-me ao meu
    destino Foi ele, o vazio, que me levou a sair de casa naquela noite
    
                         17
                          
        





    romo ao centro de Sao Goncalo procurando o logar onde, de acordo
    com o programa de radio, "um milagre espera por voce".
    
                                                 O milagre esperava por mim no velho predio do Cine Santa Maria,  j
    
    que durante a semana exibia filmes pornograficos. Aos sabados e
    domingos, entretanto, tinha o seu cenario radicalmente modado.
    A bilheteria fechava, a catraca era removida e os cartazes da AlUine
    Mller eram levados para o outro lado da tela. O profano emprestava
    seus assentos ao sagrado. O sagrado era materializado por um calice
    de azeite bento colocado no centro de uma mesa forrada com uma
    toalha de renda branca, sobre a qual jazia uma Biblia aberta em um
    salmo qualquer.
    
    As pernas tremulas e vacilantes conduziram-me aquele santuario
    improvisado, quase vazio. As poucas senhoras sentadas contrastavam
    com o grande publico que, durante a semana, se deleitava ali com As
    taras Jex~ais de ~m eavalo.
    
    Enquanto procurava um lugar para me sentar, o silencio que do-
    minava a sala fez com que, por algruns momentos, eu tivesse a impres-
    sao de ouvir hinos de louvar; hinos entoados por um exercito de anjos
    
    1nvlsiveis.
    
    Nao demorou muito para que um jovem pastor comecasse a pales-
    tra. Nervoso e ainda tremulo, nao conseguia acompanhar a fala acele-
    rada do pastor. Por fim, ele ordenou que fechassemos os olhos para
    que fizesse uma oracao.
    
    Eu nao era religioso. Meus pais se diziam catolicos, porem nunca
    iam a missa. Nos rezavamos somente quando alguem caia doente em
    casa. Na rua das Mangueiras, onde eu morava, havia uma benzedoira
    pronta para curar todo tipo de molestia: de sarampo a caxumba; de
    espinhela caida a erisipela, tudo ela curava. Era para ela que corriamos
    sempre que necessitavamos de ajuda espiritual.
    
    Durante a oracao, o jovem pastor pediu a Deus que aliviasse a car-
    ga que traziamos. Suplicava-lLe que perdoasse nossos pecados e nos
    desse a oportunidade de nascer de novo. Isso era tudo o que eu querla.
    A ideia de um renascimento abalou-me ate os ossos. Queria ser uma
    outra pcssoa. Se essa dadiva existia, estava determinado a alcanc,a-la,
    custasse o que custasse. Enquanto prosseguia em sua oracao, o pastor
    
                             1R
    
    J
    
    colocou as maos sobre a minha cabeca, e eu comecei a chorar. A prin-
    cipio eram lagrimas de angustia. Depois, tornaram-se lagrimas de
    alivio e alegria. Sentia-me leve enquanto deixava extravasarem os sen-
    timentos sem me importar se estava sendo oLservado pelas pessoas ao
    meu redor. Ao mesmo tempo que chorava, sentia meu ser encher-se
    de um prazer imensuravel. Um prazer que preenchia todo o vazio.
    Um prazer que me era introjetado ate que explodia numa especie de
    orgasmo espiritual, fazendo minha alma transbordar em gozo. O
    encontro com a religiao fazia-me sorrir e chorar de uma so vez. E com
    a mesma intensidade. Conheci, naquele momento, o fen“meno da
    conversao. Alguem me abracou. E eu chorava mais e mais. Nesse
    momento o pastor colocou a mao na minha cabeca e, enquanto as
    pessoas cantavam alto e batiam palmas, falou, quase sussurrando em
    meu ouvido, que meu nome era Exu Caveira e que eu tinha cancer.
    Depois me fez ir ajoelhado ate a frente da tela que ocultava os posters
    da atriz AlUine Mller.
    
    Uma vez na frente, fui sabatinado pelo homem de Deus:
    
    -QUAL e O TEU NOME, SAFADO?-vociferou no meu ouvido.
    
    Um silencio profundo invadiu 0 cinema. Todos esperavam uma
    resposta. Eu nao sabia se o pastor perguntava meu nome verdadoiro
    ou aquele que ele havia sussurrado no meu ouvido.
    
    - Mario - respondi.
    
    -MENTIROSO! -berrou 0 pastor.
    SA fANAS!
    
 
    





    O silencio voltou a predominar na sala:
    
    - FALA TEU VERDADEIRO NOME.
    
    -EXU Caveira?-respondi, como a perguntar se era esse o nome
    que deveria falar.
    
    - TA AMARRADO, CAPETA! EM NOME DE JESUS! - gritou o pastor,
    enquanto pisava na minha cabeca, forcando-a para o chao.
    
    - TA AMARRADO! QUEIMA! QUE]MA! - responderam, em coro, as
    excitadas velhinhas, ao testemunhar a autoridade de seu pastor sobre
    mim, o espirito imundo.
    
    Ao final do culto, o jovem me deu um Novo Testa~nento e me falou
    que Deus me amava. Depois de conversarmos por alguns minutos,
    despedi me, prometendo voltar.
    
                            1 ~
                              
        





    Prometi e cumpri. No dia seguinte, fui um dos primeiros a chegar.
    Ao contrario da noite anterior, o cinema estava cheio naquela manha.
    Durante um culto acompanhado com mosica e distribuicao de rosas
    brancas, fizeram um convite para os que quisessem ser membros da
    Igreja. Nao pensei duas vezes. Afinal, pela primeira vez na vida expe-
    rimentava paz. Estava no meio de pcssoas que, apesar de nao me
    conhecerem, me aceitavam como um membro de sua propria familia.
    Eu queria ser um deles. Queria pertencer aquele grupo que era tao
    poro, tao unido, tao desligado das coisas deste mundo e tao cheio de
    amor. Algumas coisas eu nao entendia ainda, como a questao das altas
    ofertas e os dizimos, por exemplo, mas nao me importava com isso.
    Dinheiro nao era importante Ensinaram-me que "o dinheiro e a raiz
    de todos os males".
    
    Nao demorou muito para que minha familia se desse conta da
    mudanca de meu comportamento. Em vez de andar triste pelos can-
    tos, como fazia usualmente, agora eu cantava hinos e lia a Biblia. Meus
    pais, que a principio gostaram da mudanca, logo modaram de opi-
    niao, quando perceberam que eu estava indo longe demais: ja nao me
    interessava pelos estudos e faltava as aulas para ir a igreja.
    
    Quando o Cine Santa Maria se transformou definitivamente em
    um templo da Igreja Universal do Reino de Deus, eu passei a fre-
    qentar os cultos todos os dias. Muitas vezes nos quatro turnos. Meu
    pai chegou a me proibir de ir a igroja durante a semana, como uma
    maneira de me prender aos estudos. Mas isso nao funcionou. Eu preci-
    sava ir todos os dias.
    
    As brigas com meus pais por causa de mou fanatismo religioso
    comecaram a ser constantes. Mas o pastor Luiz, que naquela epoca
    ainda nao tinha rompido com a Igreja Universal para se tornar um
    adventista do Setimo Dia, alertou-me para as palavras de Cristo quando
    Ele disse que, por causa do Evangelho, haveria dissensoes entre pais e
    filhos, e que os maiores inimigos da nossa fe seriam os de nossa pro-
    
    pria casa.
    
    Um mes depois de ter entrado para a Igreja, o pastor Luiz me
    convidou para ser obreiro. Pensei que isso talvez fosse me atrapalhar
    
    ainda mais nos estudos, mas eu achava que daria um jeito de conciliar
    
    20
    
    !
    
    as duas coisas. Nao deu certo. E entre a Igreja e o colegio, optei pelo
    conhecimento da graca.
    
    Meus pais continuaram, sem sucesso, tentando fazer com que eu
    desistisse da Igreja Universal. Varias vezes, durante nossas discussoes
    dizia-lLes que nao deixaria de maneira alguma a Igreja em que Deus
    me havia curado de cancer. E que me mataria se eles tentassem me
    impedir de ser obreiro.
    
    A ultima gota d'agua veio quando abandonei o colegio de uma vez
    por todas. Aquele esquema conciliatorio entre aulas e cultos nao fun-
    cionou, e, sem pensar duas vezes, abri mao da bolsa de estudos que
    tanto havia me esforcado para conseguir. O pastor, entao, me disse
    que a melhor solucao seria eu sair de casa. Falou que eu poderia ficar
    morando na igreja. Afinal, eles estavam mesmo precisando de alguem
    para abrir e fechar o templo, alem de um vigia para a noite.
    
    Aceitei o convite do pastor Luiz e, com apenas quinze anos de
    idade, resolvi abandonar a casa de meus pais e entrar de vez para 0
    Reino de Deus.
    
    Ao chegar em casa para apanhar as minhas roupas, encontrei mi-
    nha mae, que trabalhava no tanque - ela estava sempre no tanque.
    Nao sabia como contar que estava indo embora. Nunca pensei que
    um dia fosse lhe dizer isso. Dos tres filhos, eu era o mais ligado a ela.
    
    - Por que esta fazendo isso, meu filho? Que mal te fizemos?
    
    Imbui minha alma de sentimentos nobres para tentar explicar tudo
    a ela, mas no fundo sabia que era um esforco inutil. Ela jamais entende-
    ria. Entao, desviando meus olhos dos dela, disse-lhe que aquela era a
    primeira vez na vida que nao me sentia triste. Que me sentia em paz
 
    





    comigo mesmo e com Deus. Eu queria ficar na Igreja. Eu queria morar
    no templo.
    
    - Filho, quem sou eu para disputar com Deus o seu coracao -
    disse-me ela.
    
    Lembro-me de todos os detalhes daquele dia, por duas razoes: foi a
    primeira vez que vi minha mae chorar; e foi a primeira vez que ela
    me disse que me amava. Enxugando a mao no avental molhado, ela
    me acompanhOu ate a porta. Tentou disfarcar o que sentia com o ve-
    lho trugue do cisco no olho, mas pude ver que chorava.
    
                         ~1
                          
        -





     Bencao, mae - disse com um no na garganta.
    
    - Deus te abencoe - respondeu ela.
    
    Carregando a sacola de roupas, caminhei em direcao ao ponto de
    “nibos que ficava embaixo das mangueiras. Ao passar pelo nosso cam-
    pinho de varzea, meus amigos pararam a pelada e vieram se despedir
    de mim. Eles ouviram que eu estava indo embora.
    
    - Quem vai ser o presidente? - perguntou Dilcinho, secretario-
    geral do "Clube dos Batutinhas", que haviamos copiado do seriado
    americano exibido pela rv Educativa. Dilcinho, por certo, ja estava
    pensando em assumir o meu lugar.
    
    - E quem vai ser o tecnico? - perguntou Dude, tambem de olho
    na minha posicao.
    
    Pessimo em futeLol, eu me autoproclamara tecnico do time da
    rua. Como cartola, protegia minha falta de talento com a bola. Ainda
    tive tempo de distribuir meus cargos, figurinhas premiadas, uma re-
    plica do carro do Sperd Racer, selos e bolas de gude antes de entrar no
    “nibos que me levaria a cidade.
    
    Quando a "baratinha" passou em frente ao portao de casa, de sua
    janela enlameada acenei para minha mae, que se debrucava na cerca.
    Nao sei explicar por que ela me deixava ir. Eu era praticamente uma
    crianca. Ela poderia ter me forcado a ficar. Poderia ter impedido, pois
    talvez acontecesse comigo o mesmo que acontecera a ela quando tinha
    quase a mesma idade. A rapidez da "baratinha" ainda me permitiu
    ve-la respondendo com outro aceno. E, por alguns instantes, ficamos
    acenando um para o outro ate que ela desapareceu em meio a poeira
    vermelha. Anos mais tarde, eu me daria conta de que a havia perdido
    naquele dia.
    
    Perdido para sempre.
    
                         II
    
    Hoje em dia e inconcebivel a ideia de uma mulher que faz o pro-
    prio parto dentro de um barraco de pau-a-pique, tendo como unica
    ajudante uma filha de dez anos que, a cada momento do agoniante
    processo, traz a beira da cama canecas com agua quente e pedacos de
    
    22
    
    pano, enquanto a mulher, tentando ignorar a fumaca do fogao de le-
    nha, galinhas e patos que correm em algazarra - e a propria dor-
    traz, literalmente, o filho ao mundo. Foi assim que eu nasci. Nesse
    estado de pobreza passei toda a minha inEancia.
    
    Minha mae era de Curvelo, cidadezinha do interior de Minas
    Gerais. Nao se cansava de contar historias da intancia vivida entre
    arvores e riachos, mas nunca se aprofundava nos detalhes. Como, por
    exemplo: quem teriam sido seus pais? Tudo o que sabiamos era que,
    ainda adolescente, tinha sido vendida para trabalhar na casa de uma
    madame no Rio de Janeiro e que desde entao nunca mais vira a mae e
    
    os Irmaos.
    
    As madames para as quais ela havia trabalhado diziam que era a
    melhor lavadeira que conheciam. Ela recebia o comentario como elo-
    gio. De fato, 0 jeito como minha mae tratava as roupas era algo proximo
    a um ritual: depois de lavadas com sabao de coco, elas eram fervidas
    com anil e ficavam quarando ao sol durante um dia. Em seguida, engo-
    mava e passava peca por peca, enquanto soprava as brasas do ferro.
    
    Algumas patroas levavam a roupa em minha casa. Outras, como
    donaJurema, minha mae atendia em domicilio. Dona Jurema viria a
    ser a unica amiga de minha mae. Feliz era 0 dia que iamos a casa dela.
    Enquanto minha mae lavava a roupa e conversava com a amiga, eu
    ficava brincando com os seus netos no quintal, subindo nos pes de
    goiaba ou assistindo ao Natio~lal Kid, no programa do Capitao Asa.
    No final da tarde, ela me oferecia cafe com bolo e sempre antes de
    irmos embora me dava uma mao cheia de balas e bombons. Dona
    Jurema era uma senhora bondosa.
    
    Posso estar correndo o risco de cair na pieguice, mas eu adorava
    mamae. Ela era, para mim, uma especie de santa. Uma Maria mae de
 
    





    Deus ou coisa semelhante. Ela era tao pura aos mous olhos e eu sabia
    que era tudo que eu tinha. Ficava com medo so de pensar que um dia
    ela podesse morrer, deixando-me so. Nao me imaginava vivendo sem
    ela. Chegavamos ao extremo de comer no mesmo prato. Cresci pro-
    metendo a mim mesmo que ganharia muito dinheiro e tiraria minha
    mae daquela miseria. Compraria para ela uma casa com laje e agua
    encanada, uma televisao para que pudesse acompanhar as novelas e,
    
    23
    

This page was created using WEB Wizard Version 1.2
Copyright © 1995 ARTA Software Group and David P. Geller