Só faltam a Inquisição e o óleo fervente

Enquanto a ciência decifra o código genético, há incremento no Rio de Janeiro de doenças que estavam praticamente erradicadas como a lepra.
Enquanto importantes cidades no mundo ampliam a defesa da cultura, do patrimônio, dos espaços de cidadania e de segurança, o Rio está dividido em territórios controlados pela bandidagem, o comércio paga pedágio e fecha as portas sob ordens de gangues, e quem pode ergue guaritas e eletrifica cercas. Só faltam as pontes levadiças e baldes de óleo fervente.
Enquanto o mundo reforça os princípios republicanos do Estado laico para combater a barbárie e o fundamentalismo, o Estado do Rio de Janeiro implantou o ensino religioso confessional e doutrinário nas escolas públicas estaduais.
Somos favoráveis a que os alunos estudem a história, a filosofia, a ética e os valores das religiões, o que é diferente de termos padres, pastores e rabinos na condição de funcionários públicos pregando suas doutrinas em salas de aula.
Em várias escolas, sobretudo do Norte Fluminense, ensina-se a teoria do criacionismo e são desqualificados os ensinamentos de Darwin sobre a evolução das espécies. A governadora Rosinha Garotinho declarou em entrevista aos jornalistas Maiá Menezes e Paulo Motta, do GLOBO, que seus avós não descendem dos macacos, pois estes não ajoelham e rezam.
A ampla liberdade religiosa garante o ensinamento das doutrinas nas escolas e templos sustentados pelos fiéis de cada denominação.
O governo sancionou uma lei completamente inconstitucional que fere o princípio do Estado laico, separado das igrejas. Assistimos à pregação religiosa em escolas públicas, financiada com recursos dos impostos pagos por todos os cidadãos. Tentou-se a via judicial para derrubar a lei mas só se conseguiu adiar o concurso para professores, que finalmente aconteceu por iniciativa da governadora.
O edital previa, entre outras ilegalidades, a possibilidade de demissão para os professores concursados que perdessem a fé e, conseqüentemente, o credenciamento pela “autoridade” religiosa exigido pela lei, em agressão aos princípios republicanos e ao estatuto dos servidores.
Como seria comprovada a perda da fé? Nos tempos da Inquisição, a Humanidade se horrorizava com os torturantes espetáculos dos Autos da Fé, que, felizmente, foram banidos.
Outras ações obtiveram liminares contra o edital inquisitorial, mas o governo conseguiu cassá-las. Recentemente a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Educação ingressou na Justiça federal pela inconstitucionalidade desta lei, que torna o Rio um estado confessional.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional prevê o ensino de caráter inter-religioso, não confessional, e veda o proselitismo. Determina o concurso como único critério de ingresso, o que coloca na ilegalidade o obrigatório credenciamento de autoridades religiosas; institui o sistema público de ensino, e não as igrejas, como a entidade definidora dos currículos dos cursos.
O Rio estabeleceu um sistema próprio que desobedece frontalmente à diretriz dessa lei para todo o país. Tem-se resistido há três anos a esta versão fundamentalista, com o Movimento Inter-Religioso, que congrega 26 denominações religiosas e que defende o ensino religioso amplo, não confessional. Aprovou-se na Assembléia Legislativa (por 48 votos a dois) um projeto que adequou a lei aos princípios constitucionais e à legislação educacional. A governadora vetou e acionou a “máquina”, que manteve o veto. O ministro da Educação, Tarso Genro, foi alertado sobre o fato de que parcela do repasse federal para a educação do Rio, ao invés de suprir carências estruturais do ensino, financia a pregação religiosa ilegal nas escolas públicas. O ministro ficou escandalizado e prometeu estudar medidas. Segue a luta pelo Estado laico e pela liberdade religiosa. Sem volta à Idade Média.

CARLOS MINC é deputado estadual (PT-RJ).
Jornal: O GLOBO Autor: CARLOS MINC data : 01/04/2005
Editoria: Opinião Tamanho: 601 palavras
Edição: 1 Página: 7 Coluna: Seção: Caderno: Primeiro Caderno